A Memória que me contam, 2013.



Um cinema de experiências e não político?


Propus-me a  um desafio, este resume-se e concretiza-se no estudo  da trajetória e a cinematografia da cineasta Lúcia Murat, ambas atreladas, pois como a cineasta afirma em entrevistas  seus filmes sobre a Ditadura Militar têm como ponto de partida suas experiências como uma jovem de classe média com pretensões revolucionárias, com uma presa política, vítima da tortura, esta um dos principais dispositivos utilizados pelo regime autoritário. Sendo que até hoje, apesar das medidas em prol dos Direitos Humanos  e das denúncias, mantem-se como um recurso recorrente e operante.

Escrevo aqui sobre o filme mais recente de Lucia,    A Memória que me contam, lançado no ano passado, assim como Quase dois irmãos (2005) e  Uma longa viagem (2011) uma das temáticas centrais é a  das  “utopias destruídas” de uma geração que resistiu ao regime político autoritário, e que buscava não apenas acabar com ele, mas de forma mais ampla uma sociedade mais justa, mais igualitária. É assim, que Lúcia consente a Revolução para sua geração, ela não se resumia apenas em derrubar o poder dos militares, mas transformar as estruturas remanescentes da sociedade brasileira. Lúcia e muitos de sua geração sonhavam e, o melhor de tudo, lutaram por uma “sociedade ideal”.

Lúcia resiste um pouco em definir o seu cinema como sendo político, apesar da dificuldade que encontramos de dissociá-lo dessa condição, e quem sabe objetivo.  A cineasta acredita que o termo seja mais apropriado para fazer referências a um gênero, do que propriamente a seus filmes. Para ela, os seus filmes não são continuidade de sua luta, mas muito mais de sua vida. Os seus filmes têm como fundamento as suas experiências no passado, principalmente, a da resistência à ditadura, por essa razão as situações associadas à violência, à diferença e à tortura são recorrentes em suas obras. Essas são situações limites que viveu e que acha impossível fugir delas. 

“Pelo resto da minha vida eu repito nos meus filmes as mesmas coisas de maneiras diferentes.”

Apesar de possíveis repetições, os filmes de Lúcia Murat  possuem singularidades que os diferenciam uns dos outros, há uma aproximação no campo temático, o uso do lúdico,  este interligado às idas e voltas – um trânsito dissonante, revelador, às vezes doloroso da memória. No entanto, sua obra corresponde a “propostas estéticas e buscas diferentes”, mesmo que eles digam respeitos a momentos passados de sua vida. 

Em A Memória que me contam  vamos conhecendo de forma gradativa a militante Ana, por meio das falas de seus antigos “companheiros”, que tentam no período contemporâneo lidar com a condição de terem sobrevivido à perseguição, à prisão e à tortura. Como declara Lúcia Murat e uma das personagens de seu filme, há um sentimento de culpa cercando esses indivíduos devido ao fato de terem continuado vivos, enquanto outros envolvidos na mesma luta que eles não tiveram o mesmo destino.

Sendo assim, a figura de Ana, ou melhor dizendo, a lembrança que eles têm de Ana é um dos  principais elementos que os mantêm ligados ao passado de resistência e militância política. A narrativa do filme estrutura-se a partir de flashes de memórias de seus personagens, por essa razão podemos dizer que ela é fragmentada,   descontínua  e parcial. Com molduras nostálgicas e afetivas. Há a dor da perda da amiga, mas há outra dor  de um  não lugar no mundo dessa geração de presos políticos, que apesar de terem se tornando pessoas bem sucedidas, sentem-se ora injustiçados, ora culpados. 

O revelar as histórias implica em mexer em um passado doloroso, que alguns não querem trazer à tona, não diria que Ana represente essa parte dolorosa do passado desses amigos ex-militantes contra o regime militar.  Ana de certa forma representa o que de bom existiu naquela época. Se por um lado,  eles reconhecem que não foram apenas vítimas, pois também usaram da violência como meio de defesa e como forma para tornar suas lutas mais efetivas, alguns deles reconhecem que na atualidade afastados de suas pretensões revolucionárias de outrora começaram a fazer política de fato. Entre os ex-militantes, encontramos profissionais bem resolvidos e com influência significativa na sociedade, por exemplo, um ministro. 

O filme apresenta como pano de fundo  questões ligadas aos “reparos” e buscas por verdade, esta longe de ser única, no que diz respeito aos impasses de lidar com as memórias da ditadura civil-militar na sociedade brasileira. As recusas e insistências de abertura dos arquivos, um novo momento da nossa história  iniciado com a implementação das Comissões da Verdade, as quais tentam lidar com os pilares: Memória, Verdade e Justiça.

Ana mantem-se jovem e bonita na lembrança de seus companheiros. Ela, na minha leitura, representa a utopia de outrora.

“Ana nossa eterna rebelde, que nos unia e de quem precisávamos!”

 Mas ela não sobreviveu. Ana confessa à amiga: “Minha identidade se foi nessa revolução perdida (...) Estou sobrevivendo a mim mesma!”

As utopias derrotadas e os sentimentos de injustiça  e culpa que aparecem no filme não fazem dele uma obra extremamente pessimista. As revoluções diferente daquela de meados e segunda metade do século passado assumem outras especificidades e pretensões em nossa sociedade contemporânea, cabendo a cada um de nós acreditar ou não, defender ou repudiar suas possibilidades e intenções.

Uma das vias possíveis no meu ponto de vista é a arte. O jovem Eduardo afirma: “Micro revoluções , explosões de afetos, insisto persisto, levo minhas artes para as ruas, é a minha revolução!”

Por mais que Lúcia Murat seja relutante em denominar os seus filmes como políticos, e que eles expressem a sua luta, diria, assim como a própria, que reconhece que o lidar com um passado traumático e continuar criando é incrível. Para ela, é uma maneira de lidar com a culpa, para mim a de continuar envolvida numa causa revolucionária, não aquela que buscava uma sociedade ideal, mas uma que recusa um hipócrita e conveniente esquecimento, que escancara uma história, que apoia-se na memória como experiência, fundamento e legitimação, por mais que o seu trânsito às vezes seja confuso e doloroso.


Cleonice Elias da Silva    


Share this article :

Postar um comentário

 
Support : Creating Website | Johny Template | Mas Template
Copyright © 2011. CineImpressões - All Rights Reserved
Template Created by Creating Website Published by Mas Template
Proudly powered by Blogger