O filme La Ciudad y los Perros a ausência e presença da cidade
As impressões que apresento aqui sobre o filme La Ciudad y los Perros (Francisco J. Lombardi, 1985), adaptação da obra literária de Mario Vargas Llosa publicada em 1963, foram apresentadas na mesa de encerramento do Ciclo Mario Vargas Losa: A arte de narrar organizado pelo Movimento Cineclubista do Memorial da América Latina, o evento ocorreu no dia 26 de outubro de 2013.
Não sou apenas uma pesquisadora do Cinema Latino-Americano, mas sua uma defensora, nutro perspectivas otimistas com relação a ele, às vezes até utópicas. Todavia, não deixo de considerar pertinentes as declarações de Paulo Paranaguá na apresentação de seu livro Cinema na América Latina – Longe de Deus e Perto de Hollywood, na qual autor afirma que a maioria dos filmes realizados na América Latina desapareceram, e que um crítico deve torna-se “historiador e este, arqueólogo”. Não nos deparamos com dificuldades apenas ao “recompor o quebra-cabeça”, mas principalmente, ao tentarmos “decifrá-los".
Diante dessa dificuldade de se escrever e falar sobre a história do Cinema Latino- Americano, não situarei o filme em questão dentro de uma conjuntura de produção do cinema peruano, e muito menos do Cinema Latino-Americano de forma mais ampla, o que implicaria de fato em uma abordagem muito genérica, a qual deixaria muitos aspectos importantes da cinematografia peruana e das cinematografias latino-americanas passarem desapercebidos, desconsiderar as particularidades e conjunturas específicas desses cinemas seria uma grande negligência.
Em linhas gerais, uma produção de filmes mais significativa no Peru começa a ser notada a partir da década de 1990, isso devido principalmente aos fomentos estatais. Na história do cinema peruano não é possível notar movimentos cinematográficos coesos, nos quais um grupo de determinados cineastas compartilham das mesmas orientações teóricas e estéticas ao realizarem os seus filmes.
De fato, há algumas produções na contemporaneidade interessadas em discutir a cultura peruana , a que mais conseguiu manter muitos de seus elementos pré-colonização, dentre as demais da América Latina, por exemplo, o Quechua e o Amará têm o status de língua oficial no país, juntamente com o espanhol.
No Peru praticamente não foram produzidos filmes sobre a história política do país, situação que pode ser explicada devido ao fato de o governo peruano ser o principal fomentador da produção de filmes, limitando assim o campo temático e as pretensões críticas de alguns cineastas.
Há afirmações isoladas de que talvez Pataleão e as Visitadoras (2000), também de Francisco J. Lombardi e uma adaptação de um romance de Vargas Llosa, tenha sido o filme peruano que alcançou o maior número de espectadores.
Uma característica marcante no cinema peruano são as adaptações literárias, dentre os autores que mais tiveram suas obras “transpostas” para linguagem cinematográfica, estão Mario Vargas Llosa e Jaime Bayly. Francisco J. Lombardi é considerado como o cineasta que mais realizou adaptações literárias no cinema peruano, também é o que mais produziu filmes no decorrer de sua carreira.
Um dos trabalhos mais bem recebidos na atualidade por uma crítica internacional é o da cineasta Cláudia Llosa, sobrinha de Mario Vargas Llosa, sendo a aculturação uma das principais temáticas abordada em seus filmes. Com o seu segundo filme O leite da Amargura (A Teta Assustada) conquistou o Urso de Ouro em 2009 e uma indicação ao Oscar de melhor filme estrangeiro, reconhecimento inédito para o cinema peruano. Um outro filme de Cláudia Llosa é Madeinusa (2006). A cineasta dá prioridade para as personagens indígenas, a atriz Magaly Solier protagonizou dois filmes seus, além disso, alguns diálogos e a trilha sonora são em Quechua.
Como ocorre na maioria das adaptações literárias para o cinema, muitos elementos do texto acabam não sendo “respeitados”, ou melhor, acabam não sendo reproduzidos na linguagem cinematográfica. A leitura de um texto está atrelada a um processo do imaginário, esse influenciado diretamente pelas subjetividades do leitor, por essa razão uma mesma obra literária pode ser adaptada de diferentes formas (a partir de diferentes perspectivas) para o cinema. Outros fatores, além das subjetividades e impressões do diretor e roteirista influem nos recortes escolhidos, e na ênfase dada a um determinado assunto/situação em detrimento de outro/outra.
A narrativa de Llosa é complexa, fato que em um primeiro momento pode dificultar a sua transposição para a narrativa fílmica. Em suma, há um predomínio no filme de planos mais fechados, os planos panorâmicos são poucos (destaque para o treinamento dos cadetes no deserto e para a cena final, na qual o travelling desloca-se da fachada do Colégio Militar Leoncio Prado apresentando ao espectador o espaço a sua volta, congelando na costa marítima, o Colégio fica de frente para o mar). A trilha sonora cumpre um papel mínimo na narrativa: as únicas músicas tocadas no filme são o hino do exército peruano e um bolero quando Fernandez visita o prostíbulo.
A partir de um flashback de Alberto Fernandez “o herói” da narrativa conseguimos intuir o porquê da palavra perros ser um elemento constituinte do título da novela e mantido na versão cinematográfica. Em uma espécie de trote ou “ritual de iniciação” alguns cadetes são obrigados a fingir que são cachorros. Uma frase ecoa na lembrança de Fernandez “Es un perro o un ser humano ?”. Contraditoriamente, um espaço cujo objetivo é disciplinar, na verdade comporta ações violentas e de selvageria.
Apesar de não termos informações anteriores conseguimos pré-estabelecer que Jaguar (loiro de olhos claros, quase um galã) é o manda chuva do pedaço e o tímido Ricardo - o capacho -, o cadete que é constantemente humilhado pelos demais. Já Fernandez (O Poeta) é o personagem que vamos conhecendo melhor no decorrer da narrativa. Lombardi não é fiel ao romance de Llosa, não nos apresenta elementos referentes aos cadetes fora do Colégio, ou seja, a cidade, a qual está muito presente no romance. Lombardi dá ênfase para o enclausuramento, o qual intensifica a tensão entre as relações que são estabelecidas dentro do espaço fechado que corresponde ao Colégio Militar.
Fernandez não se enquadra plenamente nos moldes de um herói (aos moldes de Clarck Kent, por exemplo), pois tem algumas condutas morais que podem ser vistas como “transgressoras” (“rouba” a Tereza do cadete Ricardo, escreve novelas pornográficas, cola durante o exame, trai Tereza com uma prostituta, enfim). Mas talvez seja esse um dos pontos marcantes nessa obra de Llosa, os personagens são dúbios, não expressam sentimentos plenamente bons ou ruins, através de um típico maniqueísmo do melodrama. Outro exemplo, é a indiferença de Tereza e dos demais cadetes do Colégio com a morte de Aranas (cadete Ricardo). Apesar de não ter seguido à risca a novela de Llosa, Lombardi consegue dá ênfase a uma crítica intensa às relações configuradas entre os muros do Colégio Militar Leoncio Prado, as quais de uma forma mais amena ou gritante manifestam-se na “lógica” e na “dinâmica” da cidade narrada por Llosa.
A crítica de Llosa, dentre outras, centra na disciplina tão necessária na vida militar, a qual rege o Colégio, todavia, percebemos que essa disciplina é constantemente burlada (vendas de cigarro, revistas de mulheres nuas, consumos de bebidas alcoólicas, entre outros). O circulo constitui um novo regimento dentro do regimento institucionalizado pelo Colégio, no primeiro momento, ambos coexistem. Sendo a figura do Tenente (Gamboa), a expressão máxima do cumprimento da disciplina institucionalizada e aclamada pelo exército. A cena dentro da sala de aula demonstra “a supremacia” da disciplina militar, os alunos não respeitam o professor que não se posiciona diante deles da mesma forma autoritária e rígida do tenente Gamboa, o qual é muito respeitado pelos cadetes.Uma situação que exemplifica esse respeito, é quando Fernandez o procura para denunciar o assassinato de Ricardo, e no final do filme o mesmo faz Jaguar.
Forçando um pouco a barra diria que é possível traçar um paralelo com o “romance de formação”, pois alguns personagens passam por modificações no decorrer da narrativa, não que elas necessariamente sejam “boas”. Por exemplo, Jaguar ao final do filme confessa a autoria do crime, mas continua defendendo o mesmo discurso, o qual por sua vez é muito próximo do difundido e institucionalizado pelo exército. “Eu ensinei todos eles a serem homens!”. Este trecho encontra-se na página 144 da versão online do romance, momento em Jaguar confessa a Gamboa a autoria do crime (a morte do cadete Ricardo). E o “herói” Fernandez acaba tomando o posto que anteriormente era de Jaguar.
Enfim, a leitura apresenta por mim do filme foi plana, priorizei alguns aspectos que em um primeiro momento me chamaram mais atenção. Gostaria apenas de pontuar que em algumas instituições de nossa contemporaneidade a disciplina permanece “altiva” como discurso e como prática, ambos cercados por contradições e tensões.
Espero de forma otimista que mais olhares “polifônicos” (vindos de diferentes áreas de conhecimento e de diferentes cantos desse mundo) se direcionem para as singularidades da produção cultural latino-americana. E que o nosso hibridismo cultural continue dinâmico e criativo! O importante não é ter uma resposta para pergunta: “O que é ser latino-americano?” e sim, simplesmente, sentir-se “latino-americano”!
Cleonice Elias
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