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Crepúsculo dos Deuses, 1950.


"Crepúsculo dos Deuses" já nasceu clássico. Tudo nele tem um peso que poucos filmes conseguiram até hoje. É muito difícil reunir tantos ícones do cinema em um filme só, mas é o que aconteceu com este, que é considerado um dos melhores filmes noir já feitos na História do Cinema. E com todos os méritos possíveis e imagináveis.

O desfile de maravilhas começa por seu diretor, o gênio Billy Wilder. Não posso dizer que vi poucos filmes na vida, embora ainda não tenha visto uma gigantesca parcela daqueles considerados "essenciais", mas a direção de Wilder é algo que me encanta. Você assiste e sabe imediatamente que é uma obra de Billy Wilder, tem a assinatura dele. Ele é um mestre em narrar histórias visualmente. Nascido na Polônia, Wilder dirigiu alguns filmes alemães até que, em 1933, teve de fugir para a França (e depois para os EUA) com a chegada de Hitler ao poder. Perdeu seus pais no holocausto e essa lembrança jamais deixou de influenciar seus filmes: a maioria tem um quê amargo, de desilusão, de melancolia, mesmo em obras mais voltadas para a comédia (como "Sabrina", de 1954, com a deusa Audrey Hepburn). Do mesmo modo, Wilder nunca foi um diretor passivo: ele adorava provocar a plateia tocando em assuntos polêmicos. Por exemplo, em "Inferno nº17" (1953), mostra os soldados alemães completamente parvos, abobalhados, dirigindo um campo de prisioneiros estadunidenses: é uma obra ao mesmo tempo bastante cômica e triste, já que nos coloca pra pensar como podemos rir de algo que, sabemos, foi absolutamente terrível e execrável dentro do percurso humano. E, voltando a "Crepúsculo dos Deuses" (uma tradução brasileira que, embora bonita, se perde frente ao original "Sunset Boulevard"), não foi diferente: aqui Billy Wilder sai distribuindo tijoladas em todo mundo, ninguém presta, ninguém é bom ou mau inteiramente, bem-vindos ao mundo-cão de Hollywood.

"Crepúsculo..." é uma obra extremamente ousada, ainda para os padrões de hoje. Na verdade, acho que atualmente há menos coragem no meio cinematográfico: quase tudo é politicamente correto. Não foi o caso desse filme. Pra ser sincero, não sei como a Paramount o distribuiu: a obra é uma crítica ao cinema hollywoodiano em geral, mas é contada por meio do exemplo da própria Paramount! Nos extras do DVD há um relato dizendo que o presidente da Paramount odiou o filme, além de ter chocado muitas pessoas na época; porém, mesmo assim, o filme foi distribuído e chegou a ser nomeado a 8 Oscar (incluindo uma nomeação para cada ator e atriz do filme, além de Direção e Melhor Filme), ganhando apenas 3, em quesitos técnicos e roteiro. Quem ganhou o Oscar daquele ano? " A Malvada", dirigido pelo Joseph Mankiewicz. Um absurdo! Não que o ganhador seja um filme ruim - longe disso - mas é uma obra comum. Obviamente, estamos diante de mais um caso de preconceito da Academia: os jurados não aceitaram que um filme criticando a indústria cinematográfica pudesse ser coroado. Contudo, isso não impediu de "Crepúsculo dos Deuses" ser lembrado como um dos melhores filmes já feitos.

Afora Billy Wilder, temos "apenas" os nomes de William Holden, Erich von Stroheim e Gloria Swanson. Sim, Gloria Swanson, a diva do cinema mudo, uma das atrizes mais lindas que já existiram! E a história do filme se divide entre ela e William Holden. Resumidamente: Joe Gillis (Holden)  mora em Hollywood, é um escritor de roteiros que anda falido, seus filmes já não vendem mais e está em crise financeira, tendo, inclusive, de fugir dos sujeitos que vêm cobrar as parcelas atrasadas de seu carro. Numa das fugas, Gillis acaba furando o pneu de seu carro e precisando escondê-lo da vista dos credores. Por ironia do destino, ele estaciona o carro numa garagem que descobriu aberta na Sunset Boulevard nº10086. A mansão, porém, pertence à Norma Desmond (Swanson), antiga atriz da Paramount, grande nome do cinema mudo e que, desde a década de 1930, não atua mais, sofrendo da "maldição" dos filmes falados. Desmond, então, oferece um trabalho a Gillis: escrever um roteiro sobre Salomé para a sua volta triunfal ao cinema, pois seus fãs "clamam" por isso. Quebrado, Gillis aceita, mas vai percebendo que vendera a alma ao Diabo: torna-se refém de Desmond, sendo obrigado a morar em sua mansão, sendo sustentado por ela, enfim, sendo amado doentiamente pela grande atriz. Assustado, Gillis tenta de todos os modos se desvencilhar das garras de Norma mas, no final, acaba sendo sua vítima: literalmente.

O filme começa com uma cena bem interessante e que prende muito a atenção: carros da polícia cortam a Sunset Blvd. em direção à mansão de Norma Desmond. Lá, encontram um cadáver boiando na piscina: é Joe Gillis. Ele finalmente tinha encontrado a "piscina com que tanto sonhara". O recurso utilizado por Wilder é o mesmo que acontece em grande parte dos filmes noir: a narração em off (voice over) - Gillis, o cara morto, é que narra sua vida para a gente (algo similar acontece em "Cassino",1995, por exemplo). Então, desde o começo, sabemos o fim da história, mas não sabemos como ela aconteceu. Wilder vai usar 110 minutos para nos contar. Essa cena da piscina mostra um ângulo original para a época: vemos de "dentro" dela Gillis morto, com os policiais o observando na borda da piscina. Wilder queria essa tomada a qualquer custo, e tiveram de usar a criatividade para conseguir: colocaram um espelho no fundo da piscina e filmaram o reflexo, captando, assim, a frente de Gillis; a água da piscina teve de ser aquecida a 40ºC: temperatura correta para que as distorções da água pudessem enganar o espectador durante a audiência, imaginando que aquilo, na verdade, era uma câmera aquática. Genial. E o filme também termina de modo magnífico: a cena de Norma Desmond, louca, descendo as escadas de sua mansão, com todos os repórteres a filmando e fotografando é única. Hollywood vencera afinal.

Só mais umas poucas palavras para terminar. O filme não funcionaria tão bem se não fosse o elenco escolhido perfeitamente. Cada personagem do filme está ligado à vida pessoal de seus atores. William Holden estava meio em baixa na cena hollywoodiana no final dos anos 40, precisando se reerguer em um grande papel. Erich von Stroheim, que faz o papel do mordomo de Norma, o Max, foi, durante as décadas de 1920 e 1930 um grande diretor de filmes mudos. Inclusive, ele foi o responsável por levar Gloria Swanson ao estrelato: e isso é dito no filme! Max conta a Gillis que descobrira Norma aos 16 anos e que a dirigiu em alguns filmes antes da vinda do cinema falado e o forçado esquecimento de ambos. E a "culpa" de  Swanson e ele terem sido negligenciados, em parte, é mesmo de von Stroheim: seu filme "Queen Kelly" (1929) - com Swanson no elenco - foi destruído pela crítica, que o achou longo e truncado demais. Essa obra de von Stroheim, inclusive, aparece em "Crepúsculo dos Deuses", quando Norma passa um trecho dele para Gillis assistir: é, literalmente, o resgate do passado triste de Gloria Swanson disfarçado de Norma Desmond: brilhante! Swanson, por sua vez, interpreta a si mesma, mas como o nome de Norma: ela foi esquecida pelos produtores e aceitou fazer "Crepúsculo..." como uma nova tentativa na vida (que deu certo). A cena de ela indo até a Paramount pedir emprego ao diretor DeMille (com quem Swanson trabalhara anteriormente) é de cortar o coração por tanta dó que sentimos de sua figura patética. É um dos grandes pontos altos do filme: um entre tantos outros.

"Crepúsculo dos Deuses" pode ser resumido em uma única palavra, muito comum: obrigatório.

Alex Martire




Uma longa viagem, 2011.




Há mais de trinta anos foi editada a lei que concedia a anistia a todos que cometeram crimes políticos entre setembro de 1961 e agosto de 1979, semelhante à Ley de Pacificación (1983), à Ley del punto final (1986), e à Ley de Obediencia debida (1987) na Argentina, em que alguns foram absolvidos e outros absolveram a si próprios. Em abril de 2010, a lei da anistia brasileira foi julgada constitucional pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF 153, sob a relatoria do Ministro Eros Grau, ele mesmo preso e torturado em 1972, quando filiado ao Partido Comunista Brasileiro.

Em 11 de maio de 2012, concorrentemente à estreia, no circuito oficial, do filme “Uma longa viagem”, de Lucia Murat, foram nomeados os sete integrantes da Comissão da Verdade, instituída pela Lei 12.528/11 com o propósito de examinar e esclarecer as violações de direitos humanos praticadas entre 1946 e 1988. Justifica-se uma comissão da verdade sem caráter punitivo? Justifica-se.

No Brasil de 2012 ainda existem lacunas e até mesmo desaparecidos políticos, como mostram os restos mortais encontrados na Vala de Perus no cemitério Dom Bosco em São Paulo. Conta a historiadora Maria Aparecida de Aquino que, quando algumas das ossadas foram identificadas, uma das mães relatou ter ganhado enfim a permissão de chorar: até então, sentia-se obrigada a aguardar pelo retorno do filho perdido, em estado de suspensão e tortura.

A Comissão, apesar de todas as críticas que merece, a começar pelo nome pretensioso e pela composição de seus membros, tem o propósito de efetivar o direito à memória, concretizado pela disponibilização ampla de dados e documentos à sociedade e aos pesquisadores. Um direito de acesso às fontes materiais e imateriais. Assim como o filme de Lucia Murat, não se trata de um processo de revanchismo – mesmo porque a anistia prosseguirá hígida e intocada – mas de um longo e delicado processo de reflexão e de cicatrização histórica. No limite, trata-se de permitir que pessoas vivas no país de 2012 possam ter a oportunidade de saber o que aconteceu com seus entes e pares, concedendo-lhes dados para pensar por que as coisas aconteceram da forma como aconteceram.

É sobre este processo intenso e convulsivo dos anos setenta do século XX que trata “Uma longa viagem”. Como observou o ator Caio Blat, algo de biográfico que subjazia nos filmes da diretora – como em “Que bom te ver viva”, de 1989 – pulou para primeiro plano e se escancarou, concebendo algo de novo, a começar pela estrutura duplamente triádica da obra: de um lado, a instigante ideia de uma diretora, um ator, um personagem. De outro, a composição narrativa disposta na forma de um triângulo escaleno: cada um dos três irmãos como vértices que olham e observam os outros dois a partir de ângulos próprios, particulares.

Há um caçula, Heitor, há um mais velho, Miguel, e há Lúcia, militante política no momento mais crítico da ditadura brasileira. Para evitar que Heitor enverede pelo caminho escolhido pela irmã, que termina presa, os pais o enviam para uma longa viagem, enquanto o mais velho se torna médico e mestre em seu ofício. Pessoas vivas e intensas cada qual a seu modo, de um lado bastante diferente da vida. 

O filme começa a ser rodado logo depois da morte de Miguel. Seria ele um foco, um ponto fixo de serenidade, convergência e equilíbrio para Lúcia e Heitor, cada um deles um personagem em ebulição? Talvez. Mas a vida tem lá as suas idiossincrasias e o que resulta da perda do irmão mais velho é muito mais do que uma homenagem privada: trata-se de um relato rico, maduro e inovador, que foge com bastante competência das inúmeras armadilhas envolvidas na narrativa de uma trajetória familiar por um de seus membros.

Aquilo que faltou em “Eu receberia as piores notícias de seus lindos lábios”, de Beto Brant (2011), é justamente o maior trunfo da obra de Lúcia Murat: a montagem parece ser o eixo estruturante de “Uma longa viagem”, pautada por um ponto de partida levemente heterodoxo: a edição das cartas de Heitor à sua família. Trata-se então de um roteiro? Sim, à maneira de uma “intenção de narrativa”, para usar a expressão de Evaldo Mocarzel. Então, estamos diante de um documentário? Parece que sim: parte-se de fontes escritas (cartas), de fontes orais (depoimentos) e da memória pessoal para retratar uma história que, para ser contada, para ser entendida, precisa de um percurso, de uma opção editorial, de verbos e de conectivos.

Há um arco dramático em evidência, o do percurso fundacional de Heitor, entre seus 18 e 28 anos, e há uma digressão necessária, a prisão de Lúcia. O contraste entre a existência coercitivamente estática da irmã e a existência insanamente dinâmica do caçula é temperado pela ausência de Miguel. Lúcia Murat, de maneira perspicaz, percebe que deve relatar sua experiência como contrapeso necessário da história principal: a viagem do irmão mais novo. Ainda assim, não há necessariamente uma oposição entre a militante política presa e o viajante: a errância do rapaz é uma busca espiritual, mas, também, um ato de protesto, de oposição. Seu deslumbre com o mundo não o aliena, não o afasta.

E como contar a história, de que maneira? A partir da leitura de cartas, de depoimentos? Como reconstruir o que o tempo pôs a perder e que agora é uma breve e fugaz reminiscência, mascarada pelas teias do fato, pela traição reconstrutora da memória? Para se valer novamente de Eduardo Mocarzel, “o 'real' precisa de uma construção dramatúrgica para irradiar uma 'verdade' documental”. A objetividade do assunto concreto que será relatado não perde em verossimilhança simplesmente por ser tratado com sensibilidade, ou por meio de recursos dramáticos. Em outras palavras, está claro que se trata de uma obra de autor, historicamente determinada. O documentário, ao ressignificar as suas fontes por meio da reelaboração artística, transforma-se, ele mesmo, em outra fonte – uma fonte audiovisual específica.

Lúcia Murat, de maneira inovadora, encontra a sua própria linguagem, e usa, como instrumento mais interessante, a projeção da imagem, ora para a composição cenográfica, ora para a interação viva com os personagens. Caio Blat, ao comentar sobre a experiência da sua interação com a projeção, fala em uma imagem imersível, que atravessa o corpo do ator. Este mergulho na paisagem projetada produz possibilidades de atuação no intervalo compreendido entre projeção e captação da imagem, imiscuindo um em outro. Como escreveu o crítico Carlos Alberto Mattos:

Lúcia criou um aparato performático em que o ator recebe sobre o corpo e interage ludicamente com a projeção das imagens. Ou seja, o que usualmente seria linearidade e justaposição vira simultaneidade e sobreposição”.

O momento em que os dois Heitores têm as falas sobrepostas conduz a um dos takes mais instigantes do filme, ora pela atuação do ator-elenco Caio Blat, ora pelo absoluto carisma do irmão da diretora, ora pelo mérito já referido da montagem. O efeito é intoxicante, e a fantasia psicodélica, o espírito beatnik e quase niilista, e a radicalidade de Summertime de Janis Joplin embalam o espectador rumo a uma viagem interior. E qual o papel das drogas para a viagem a que Heitor se propõe? Um papel essencial.

Diante de uma realidade cumulada de extremos, diante da violência de Estado, como reagir? Haveria um sentimento de culpa no caçula ao conhecer o mundo enquanto a irmã estava encarcerada? O receio de que o prumo de sua liberdade fosse recebido pela irmã como uma ofensa a seu status de prisioneira seria um dos motivos pelos quais não lhe escrevia cartas com tanta frequência? Como conviver espremido entre dois abismos – de um lado, o diagnóstico de sua loucura privada e, de outro, a convulsão do seu tempo, dois monstros assombrosos?

As drogas, principal lubrificante social das interações humanas, presentes em quase todas as atividades festivas e religiosas, como recorda o historiador Henrique Carneiro, parecem ter sido colocadas diante do viajante como uma forma eficiente de acesso à realidade e de amenizar o contato com a vida. Heitor as usa, para utilizar a expressão do professor de História, como um “psicoscópio”: um instrumento que permite à alma observar a si por uma lente de aumento – papel semelhante talvez desempenhem as artes, entre as quais o cinema, a meditação, as religiões, ou as práticas lúdicas. Maconha, haxixe, zero-zero. Contudo, cobra-se um preço pela desmedida, e a prudência não é característica do tempo recortado pela obra dos Murat.

Heitor escreve de uma maneira convulsiva em determinados momentos de sua odisseia particular. Pratica a arte epistolográfica, fazendo o relato do viajante, do andarilho, construindo uma geografia das ideias em torno de sua obsessão indefinida. Deseja-se saber mais sobre ele, de vê-lo por mais tempo estampado na tela. Conforme a viagem prossegue, somos João Moreira Salles se lamentando de ter editado Santigo, de não tê-lo deixado falar o que quisesse por um tempo maior: deseja-se ver mais da figura canhestra e carismática de Heitor, de sua vida de absurdos, de sua prisão, de suas andanças, da sua radicalidade sem limites que colhe tudo aquilo que a vida lhe oferece de presente.

Não é um road movie documental; é algo bastante diferente. Retrata a mesma época de “O que é isso companheiro?” de Bruno Barreto de outra perspectiva, e é impossível não fazer o paralelo com o excelente “Diário de uma busca” de Flávia Castro (2010). E por que mais um filme sobre a ditadura militar brasileira, ao lado de “Zuzu Angel”, de Sérgio Rezende (2006), “Vlado: 30 anos depois”, de João Batista Andrade (2005), “Batismo de sangue”, de Helvécio Ratton (2007), entre tantos outros? Seria uma postura reflexiva do cinema brasileiro do início do século XXI para tentar entender, pelos mecanismos nem sempre racionalizados da arte, atitudes irracionalizáveis cometidas em um período de exceção? Seria uma maneira delicada de se aproximar de um ponto lacunoso da história ao qual foi negado o pleno e efetivo exercício do direito à memória?

O caçula encerrou sua viagem na Índia, aos 28 anos, quando Lúcia já conhecia a anistia no Brasil, encetando os anos setenta à forma de uma gangorra: liberdade ausente, liberdade total. Confidencia ele ter dado a volta ao mundo duas vezes, e que não se deve fazer isso; perde-se a noção do tempo. Assim como no mito adâmico, Heitor adverte que comer a maçã envolve um preço, pois o conhecimento não pode conviver com a inocência. Porém, em certas situações, comê-la é preciso e necessário: para alimentar a alma; para refletir sobre o passado.

Leonardo Branco



O Corvo, 2012.


"'Que esse grito nos aparte, ave ou diabo!'", eu disse. "Parte!
Torna à noite e à tempestade! Torna às trevas infernais!
Não deixes pena que ateste a mentira que disseste!
Minha solidão me reste! Tira-te de meus umbrais!
Tira o vulto de meu peito e a sombra de meus umbrais!'"

Disse o corvo, 'Nunca mais'".

Edgar Allan Poe, O Corvo, 1845 (Trad. Fernando Pessoa)


O diretor James McTeigue trouxe ao mundo o excelente "V de Vingança" (2005) e o execrável "Ninja Assassino" (2009): seu novo filme, "O Corvo", tal como algumas histórias do Allan Poe, caminha entre a tênue linha que separa a vida da morte. É o meio termo entre os dois extremos. Mas funciona muito bem, cumpre seu papel.

Antes de ir assistir ao filme, um aviso: leia os contos do Poe, principalmente os que formam "Os assassinatos na Rua Morgue". Não que o desconhecimento de sua obra vá interferir no entendimento do filme, mas a leitura trará pequenos prazeres ao espectador, afinal, o filme tem como cerne de sua história assassinatos cometidos por um louco inspirado nos escritos de Allan Poe. Esse é o grande divertimento do filme! É gostoso ver detalhes que surgem a partir dos livros e como o assassino vai tornando real cada crime cometido nas histórias de Poe (por exemplo, a cena inicial que remete ao caso do gorila assassino dos "Crimes da Rua Morgue" ou, logo a seguir, o pêndulo de "O poço e o pêndulo"). 

A história do filme narra que, em 1849, um assassino serial está à solta nas ruas de Balitmore, matando de acordo com o que alguma vez já foi escrito por Poe. Edgar Allan Poe (interpretado pelo bom John Cusack), por sua vez, está falido nessa época, não tendo dinheiro sequer para sustentar seu vício no álcool e ópio, e tendo dificuldades em escrever para publicar no jornal local. O detetive de polícia Fields (Luke Evans), que investiga o caso, acaba por ligar os assassínios à obra de Poe, levando a uma conclusão: chamar o próprio escritor para ajudar a desvendar os casos (que vão ficando ainda mais sérios quando ocorre uma reviravolta em sua vida pessoal). Basicamente, o filme se resume a isso. Mas foi muito bem estruturado, sendo uma boa opção para quem gosta de filmes policiais tensos. Muitos poderão dizer: "Mas isso é igual ao Sherlock Holmes!". Quem disser isso não estará errado. Na verdade, foi Holmes quem surgiu dos contos de Allan Poe: Conan Doyle sempre admitiu isso - teve como inspiração o Detetive Dupin. Há uma rixa natural entre os dois detetives, e Doyle brinca com isso no primeiro romance sherlockiano "Um Estudo em vermelho", quando Holmes diz que os métodos de Dupin eram um tanto amadores. O espírito dos dois detetives era bem diferente, carregando as personalidades de seus criadores: enquanto Holmes gostava de claridade em seu apartamento na Baker Street 221B, Auguste Dupin tinha suas janelas vedadas por madeiras, vivendo na escuridão. Há elementos n"O Corvo" que corroboram aspectos básicos da literatura policial surgida no século XIX. E creio que uns apontamentos rápidos farão com que a pessoa que for assistir ao filme possa desfrutar melhor da contextualização dos "contos de detetives". Embora o que se segue seja aplicado mais ao caso londrino, muitos elementos aparecem  na obra de Poe e são "básicos" em narrativas policiais.

A narrativa policial nasceu a partir da industrialização e metropolização do século XIX. Embora a industrialização seja anterior, somente no Dezenove ela vai fazer parte conscientemente da vida de seus habitantes, em um contexto mais amplo, o contexto da metrópole. Até meados do século XIX, a vida nas ruas ocorria em um frenesi: o cotidiano, a convivência se dava prioritariamente fora das paredes das casas, havia uma paixão pelas ruas, onde a multidão pululava constantemente, em busca de negócios e prazer, em festas noturnas que sublinhavam o caráter “nômade” de seus habitantes em um emaranhado de sensações, de sinestesias. Isso trazia problemas de diversas ordens, mas podemos destacar duas: os patrões reclamavam do baixo rendimento de seus operários que passavam a noite na bebedeira, e o aumento dos crimes que ocorriam no meio dessa multidão – o excesso de pessoas indo e vindo auxiliava o anonimato dos criminosos, tornando-se condição necessária para roubos e assassínios. Contudo, na segunda metade do XIX, são postas em práticas leis que regulam essa vida quase boêmia em Londres: os pubs passam a ter hora para fechar, com o puro intento de mandar as pessoas para casa, para não deixá-las vagar pela noite embebedando-se e cometendo crimes, há um replanejamento urbano, criando bairros específicos para operários a fim de controlar a desordem, e há, também, uma empreitada higienizadora das ruas e hábitos pessoais, para evitar epidemias. Assim sendo, quem transgride essas regras moralizadoras é tido como o vagabundo, como o suspeito que deve ser interrogado pela polícia criada com o fim último de manter a ordem na cidade. 

Ora, quem é o primeiro suspeito dos crimes ocorrido no filme? Justamente ele, o bêbado Allan Poe, o homem que fica até tarde vagabundeando nas tabernas. É interessante notar também que praticamente todo o filme tem tomadas noturnas: isso não acontece somente porque Poe está associado à Morte, ou porque é um filme de assassinatos: a noite é condição fundamental para o criminoso agir. Nas ruas apinhadas de gente ele consegue se tornar anônimo, matar, e se perder em meio à multidão. Se as ruas são perigosas demais, o que as pessoas fazem? Trancafiam-se em casa, tornando-se alheias ao mundo de fora, protegendo-se dos crimes. Porém, essa ideia de espaço privado como sagrado (em oposição à profanidade existente nas ruas) é abalada quando ocorrem assassinatos dentro das casas (como ocorrem no filme): isso choca a população, sua noção de segurança é posta em discussão: qualquer um pode ser a próxima vítima. É uma corrida da polícia contra o criminoso, tentando impedi-lo de cometer novas ações horríveis. A polícia, também ela, é colocada sob as críticas da sociedade: como podem ocorrer assassinatos dentro das casas? Por que demoram tanto para encontrar o culpado? Isso é mostrado no filme com a raiva de Allan Poe jogada sobre o detetive Fields: ele está sendo incompetente: seus métodos policiais estão sendo ineficazes.  Só há uma solução: deixar que uma mente brilhante, ou seja, Poe (tal como Dupin, tal como Holmes) entre em ação - ele é o complemento do assassino, ele é o sujeito que se põe no lugar do criminoso, pensa como ele e pode, assim, dar um fim à situação. À polícia só cabe cooperar, seja ela a Scotland Yard ou a de Baltimore.

Enfim, todos esses elementos estão presentes em "O Corvo". Com certeza não é o melhor filme do ano, nem um filme que mudará a vida de ninguém, mas como gênero policial - e para fãs de Edgar Allan Poe - é uma ótima opção para se assistir.

Alex Martire

 
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