O Corvo, 2012.


"'Que esse grito nos aparte, ave ou diabo!'", eu disse. "Parte!
Torna à noite e à tempestade! Torna às trevas infernais!
Não deixes pena que ateste a mentira que disseste!
Minha solidão me reste! Tira-te de meus umbrais!
Tira o vulto de meu peito e a sombra de meus umbrais!'"

Disse o corvo, 'Nunca mais'".

Edgar Allan Poe, O Corvo, 1845 (Trad. Fernando Pessoa)


O diretor James McTeigue trouxe ao mundo o excelente "V de Vingança" (2005) e o execrável "Ninja Assassino" (2009): seu novo filme, "O Corvo", tal como algumas histórias do Allan Poe, caminha entre a tênue linha que separa a vida da morte. É o meio termo entre os dois extremos. Mas funciona muito bem, cumpre seu papel.

Antes de ir assistir ao filme, um aviso: leia os contos do Poe, principalmente os que formam "Os assassinatos na Rua Morgue". Não que o desconhecimento de sua obra vá interferir no entendimento do filme, mas a leitura trará pequenos prazeres ao espectador, afinal, o filme tem como cerne de sua história assassinatos cometidos por um louco inspirado nos escritos de Allan Poe. Esse é o grande divertimento do filme! É gostoso ver detalhes que surgem a partir dos livros e como o assassino vai tornando real cada crime cometido nas histórias de Poe (por exemplo, a cena inicial que remete ao caso do gorila assassino dos "Crimes da Rua Morgue" ou, logo a seguir, o pêndulo de "O poço e o pêndulo"). 

A história do filme narra que, em 1849, um assassino serial está à solta nas ruas de Balitmore, matando de acordo com o que alguma vez já foi escrito por Poe. Edgar Allan Poe (interpretado pelo bom John Cusack), por sua vez, está falido nessa época, não tendo dinheiro sequer para sustentar seu vício no álcool e ópio, e tendo dificuldades em escrever para publicar no jornal local. O detetive de polícia Fields (Luke Evans), que investiga o caso, acaba por ligar os assassínios à obra de Poe, levando a uma conclusão: chamar o próprio escritor para ajudar a desvendar os casos (que vão ficando ainda mais sérios quando ocorre uma reviravolta em sua vida pessoal). Basicamente, o filme se resume a isso. Mas foi muito bem estruturado, sendo uma boa opção para quem gosta de filmes policiais tensos. Muitos poderão dizer: "Mas isso é igual ao Sherlock Holmes!". Quem disser isso não estará errado. Na verdade, foi Holmes quem surgiu dos contos de Allan Poe: Conan Doyle sempre admitiu isso - teve como inspiração o Detetive Dupin. Há uma rixa natural entre os dois detetives, e Doyle brinca com isso no primeiro romance sherlockiano "Um Estudo em vermelho", quando Holmes diz que os métodos de Dupin eram um tanto amadores. O espírito dos dois detetives era bem diferente, carregando as personalidades de seus criadores: enquanto Holmes gostava de claridade em seu apartamento na Baker Street 221B, Auguste Dupin tinha suas janelas vedadas por madeiras, vivendo na escuridão. Há elementos n"O Corvo" que corroboram aspectos básicos da literatura policial surgida no século XIX. E creio que uns apontamentos rápidos farão com que a pessoa que for assistir ao filme possa desfrutar melhor da contextualização dos "contos de detetives". Embora o que se segue seja aplicado mais ao caso londrino, muitos elementos aparecem  na obra de Poe e são "básicos" em narrativas policiais.

A narrativa policial nasceu a partir da industrialização e metropolização do século XIX. Embora a industrialização seja anterior, somente no Dezenove ela vai fazer parte conscientemente da vida de seus habitantes, em um contexto mais amplo, o contexto da metrópole. Até meados do século XIX, a vida nas ruas ocorria em um frenesi: o cotidiano, a convivência se dava prioritariamente fora das paredes das casas, havia uma paixão pelas ruas, onde a multidão pululava constantemente, em busca de negócios e prazer, em festas noturnas que sublinhavam o caráter “nômade” de seus habitantes em um emaranhado de sensações, de sinestesias. Isso trazia problemas de diversas ordens, mas podemos destacar duas: os patrões reclamavam do baixo rendimento de seus operários que passavam a noite na bebedeira, e o aumento dos crimes que ocorriam no meio dessa multidão – o excesso de pessoas indo e vindo auxiliava o anonimato dos criminosos, tornando-se condição necessária para roubos e assassínios. Contudo, na segunda metade do XIX, são postas em práticas leis que regulam essa vida quase boêmia em Londres: os pubs passam a ter hora para fechar, com o puro intento de mandar as pessoas para casa, para não deixá-las vagar pela noite embebedando-se e cometendo crimes, há um replanejamento urbano, criando bairros específicos para operários a fim de controlar a desordem, e há, também, uma empreitada higienizadora das ruas e hábitos pessoais, para evitar epidemias. Assim sendo, quem transgride essas regras moralizadoras é tido como o vagabundo, como o suspeito que deve ser interrogado pela polícia criada com o fim último de manter a ordem na cidade. 

Ora, quem é o primeiro suspeito dos crimes ocorrido no filme? Justamente ele, o bêbado Allan Poe, o homem que fica até tarde vagabundeando nas tabernas. É interessante notar também que praticamente todo o filme tem tomadas noturnas: isso não acontece somente porque Poe está associado à Morte, ou porque é um filme de assassinatos: a noite é condição fundamental para o criminoso agir. Nas ruas apinhadas de gente ele consegue se tornar anônimo, matar, e se perder em meio à multidão. Se as ruas são perigosas demais, o que as pessoas fazem? Trancafiam-se em casa, tornando-se alheias ao mundo de fora, protegendo-se dos crimes. Porém, essa ideia de espaço privado como sagrado (em oposição à profanidade existente nas ruas) é abalada quando ocorrem assassinatos dentro das casas (como ocorrem no filme): isso choca a população, sua noção de segurança é posta em discussão: qualquer um pode ser a próxima vítima. É uma corrida da polícia contra o criminoso, tentando impedi-lo de cometer novas ações horríveis. A polícia, também ela, é colocada sob as críticas da sociedade: como podem ocorrer assassinatos dentro das casas? Por que demoram tanto para encontrar o culpado? Isso é mostrado no filme com a raiva de Allan Poe jogada sobre o detetive Fields: ele está sendo incompetente: seus métodos policiais estão sendo ineficazes.  Só há uma solução: deixar que uma mente brilhante, ou seja, Poe (tal como Dupin, tal como Holmes) entre em ação - ele é o complemento do assassino, ele é o sujeito que se põe no lugar do criminoso, pensa como ele e pode, assim, dar um fim à situação. À polícia só cabe cooperar, seja ela a Scotland Yard ou a de Baltimore.

Enfim, todos esses elementos estão presentes em "O Corvo". Com certeza não é o melhor filme do ano, nem um filme que mudará a vida de ninguém, mas como gênero policial - e para fãs de Edgar Allan Poe - é uma ótima opção para se assistir.

Alex Martire

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