Impressões Recentes

(semi)Dossiê Batman, 1989-2012.




Primeiro preciso explicar o porquê de o título ser (semi)Dossiê Batman. Dentre os longas feitos com o Morcego, optei por não escrever minhas impressões sobre aqueles dois filmes que, para mim, são a mácula nas histórias do Cavaleiro das Trevas: Batman Eternamente (1995) e Batman & Robin (1997), ambos dirigidos por Joel Schumacher, que conseguiu, em dois anos, afundar a franquia Batman duma tal maneira que foi preciso fazer um reboot uma década depois. Mesmo esses dois filmes – principalmente o Eternamente – conseguindo ser melhores do que muitas obras cinematográficas de super-heróis (para verem o nível em que chegamos), Schumacher depositou todo o seu ódio para com o herói e os espectadores na produção desses longas: o mundo do Batman se tornou carnavalesco, colorido, piadístico (“BatCard, não saia de casa sem ele”), sem alma... Somente a raiva do diretor com as pessoas pode explicar tamanha destruição que causou na (quase) impecável filmografia do Morcego até então. .

Mas esqueçamos Schumacher. Para o bem de todos.

Batman chegou às telonas em 1989 pelas mãos do esquisitão Tim Burton. Um cara que amo, confesso. Os dois primeiros filmes são, essencialmente, obras de Burton: antes de serem filmes sobre o Batman, são demonstrações artísticas de seu diretor. O jeito peculiar de filmar, a trilha do Oingo Boingo Danny Elfman, a cenografia, o humor ácido e o sempre presente tom de o mundo parecer que está descompassado são marcas de toda a filmografia de Tim Burton: e isso ele levou para o Batman. O que hoje é um fato já consolidado – Burton deu novo fôlego ao Batman –, na época foi motivo de ira por parte dos fãs de HQ: muitos esbravejaram quando o diretor foi escolhido: ele havia trabalhado como animador na Disney, havia dirigido As Grandes Aventuras de Pee-Wee (1985) e Os Fantasmas se Divertem (1988), dois filmes de comédias, e, por fim, havia Michael Keaton (famoso por atuar em filmes de humor) para o papel de Bruce Wayne. Em outras palavras, a Warner contratou um diretor (genial) de filmes alegres para produzir a história de um dos heróis mais sombrios que existe. Temos de lembrar que, em 1986, Frank Miller levou o Batman a outro patamar, o de HQ para público adulto, com O Cavaleiro das Trevas: os fãs esperavam um filme pesado, e temeram que o Batman se tornasse um novo Besouro Suco (de comédia, já bastava a série dos anos 60 com Adam West e Burt Ward). Contudo, quando lançado nos cinemas, todos viram que Batman foi uma adaptação muito respeitosa, baseada (grande parte) nos quadrinhos e apresentando o lado mais dark de Burton na concepção cenográfica de seus longas.

Batman praticamente já nasceu um clássico. Os roteiristas (com Bob Kane – criador do Morcego – entre eles) optaram por levar às telas o embate entre Batman e seu arqui-inimigo Coringa (interpretado por Jack Nicholson). A trama não narra as origens do Batman, mas menciona o famoso assassinato dos pais do pequeno Bruce Wayne durante um assalto. E nessas mortes está o cerne do filme (e a sacada muito feliz de Tim Burton): o Coringa (na época Jack Napier) é o responsável pela morte dos pais de Bruce. Assim sendo, temos dois “monstros”, um criado pelo outro: se o Coringa é um lunático de sangue frio que deseja mandar nas gangues de Gotham City, Batman é o cara que se veste como doido e sai à noite nas ruas para combater o crime; se o Batman culpa o Coringa pela morte de seus pais, o Coringa somente se tornou Coringa porque Batman foi o responsável por Jack Napier ter caído no tanque químico da indústria que fora assaltar. E como todo filme do Batman, nesse é o vilão quem rouba a cena: Jack Nicholson fez um Coringa que se tornou referência por quase 20 anos, somente tendo seu papel ameaçado pelo brilhante Heath Ledger no filme de 2008. Nicholson é um dos grandes mestres do Cinema, não dá pra negar. E é covardia coloca-lo ao lado de Michael Keaton, um ator meio sem sal. Para melhorar ainda mais a atuação de Nicholson, Burton chamou para fazer as canções do filme ninguém menos do que Prince: a cena da invasão no museu de Arte de Gotham é memorável. A cidade, por sua vez, ganhou aspectos sombrios que marcariam as demais obras de Burton, mas falha (devido ao baixo investimento da Warner na época, não querendo arriscar) ao não ser mais bem explorada: só há uns 3 becos, uma escadaria da prefeitura e uma avenida principal, onde ocorre o excelente desfile de bonecos infláveis quase no final do filme. E por falar no final dele, creio que a cena mais marcante de toda a obra é a que ocorre na Catedral de Gotham, onde há o fantasma do passado surgindo para Bruce e Jack, o perigo de se perder a mulher amada (Vicki Vale, a bela Kim Basinger), e o desfecho com a queda do comediante. Por sinal, em ambos os filmes dirigidos por Burton os vilões morrem no final. Mas não só eles: o Batman mata alguns capangas: um é queimado, outro é explodido e outro é jogado do alto da catedral! Posso estar enganado, mas o Batman não costuma matar as pessoas: opção de Burton e sua mentalidade.

Batman – O Retorno, de 1992, se mostrou um filme mais maduro (ao menos, para mim). Tim Burton melhorou sua Gotham City, explorando um pouco mais as ruas da cidade – e dando um belo tom de branco com a neve do Natal. Embora o primeiro filme tenha tido o Coringa, que é o arqui-inimigo por excelência, em O Retorno, Burton trouxe algo que faltou ao vilão sorridente: humanidade. Jack Nicholson é um Coringa um tanto sem alma, sem ter um porquê de agir, é uma personagem que esbarrou num roteiro falho. No segundo filme temos o Pinguim – muito bem interpretado pelo baixinho Danny DeVito –, um ser rejeitado pelos próprios pais e vivendo nos esgotos de Gotham: essa temática é explorada pelo diretor, e é isso que dá vida ao vilão. Em O Retorno é possível sentir dó da personagem do Pinguim: ele é um coitado, vítima da sociedade, um homem que apenas queria ter um reconhecimento público. Mesmo sendo cruel, não dá pra negar que a intenção dele não seja justa: e até torcemos por ele. Por outro lado, temos a “vilã” Mulher-Gato, interpretada pela linda Michelle Pfeiffer, mas que tem uma origem bem burtoniana: os gatos dão vida a ela, mudando sua mentalidade. Tudo bem, pensando bem, é ridículo, mas estamos falando do mundo de Tim Burton e, como eu disse acima, antes de tudo, os filmes do Batman são filmes de Tim Burton. Novamente devo ressaltar o papel água-com-açúcar do Morcego: o problema nem é o Michael Keaton, mas a personagem explorada de modo muito fraco pelo Tim Burton: as cenas com Bruce/Batman são as menos interessantes – elas não acrescentam nada à trama, nem ao passado do Batman. Mas se Batman está mal desenvolvido, os cenários melhoraram bastante aqui: mantendo o tom dark, a cenografia parece estar mais limpa, sem a necessidade de mascarar as coisas, esconder defeitos – alcançaram um equilíbrio perfeito entre as cores e uma Gotham City mais parecida com o mundo das HQs um pouco mais antigas. Destaque para a animatrônica do filme: os pinguins de “brinquedo” estão bem feitos, e a maquete do Zoo de Gotham também convence, mesmo quando vemos o filme em blu-ray. No geral, Batman – O Retorno encerrou a era Burton com chave de ouro. Apesar dos deslizes – que sempre ocorrem nos filmes do diretor, mas que não é demérito – é um filme mais completo quando comparado ao antecessor. E um filme mais humanizado também.

Vou agora dar um pulo no tempo e chegar até 2005, quando houve a grande volta de Batman aos cinemas após os fiascos de Schumacher. O responsável por colocar o Morcego em foco novamente foi o, até então, quase novato Christopher Nolan, que havia dirigido Amnésia (2000). Ninguém acreditava muito nesse filme: o trauma de Schumacher ainda se fazia presente, e o Batman havia se tornado uma piada no mundo cinematográfico. Eu mesmo só fui me empolgar quando vi o resultado na tela – nem o trailer me fazia crer que esse filme seria bom. Porém, conseguindo calar a muita gente, Nolan trouxe um dos melhores filmes já feitos sobre super-heróis. Batman deixou de ser aquele herói típico de quadrinho criado por Tim Burton: agora o assunto era sério, um tema mais adulto e – mérito de Nolan – Batman não parecia ser alguém irreal, uma personagem caricata, um homem vestido de morcego que poderia causar risadas na plateia. Dando mostras de um amor, uma fascinação incrível por Ra’s Al Ghul (explico o porquê mais abaixo), Nolan foi explorar as origens do Morcego em Batman Begins (2005). Como fã, foi delicioso ver meu herói tratado com respeito na telona. Usando a trama de que algo ruim (no caso, Gotham City) deve perecer para ressurgir melhor, Nolan buscou a Liga das Sombras – lideradas por Ghul – para dar corpo ao filme. Interpretado muito bem por Liam Neeson, o mentor de Bruce Wayne (vivido pelo competente Cristian Bale) é o responsável por transformar o trauma de infância de Wayne (a morte dos pais) em força, treinando-o, fazendo com que o bilionário se sentisse seguro para retornar à Gotham após 7 anos de exílio voluntário. Contudo, quando se nega a fazer justiça matando um ladrão comum da região onde esteve preso, Wayne é visto como traidor por Ra’s Al Ghul e precisa fugir para se salvar. De volta à Gotham, Bruce acaba incorporando a figura do justiceiro na cidade corrupta sob a máscara de Batman (pois o importante, segundo ele, é ser um símbolo, não uma pessoa conhecida, um herói). O primeiro trabalho mais sério que tem é o de deter o Dr. Crane – o Espantalho (Cillian Murphy) – que está ligado ao tráfico de uma droga alucinógena que espalha medo na população. Esse gás do medo, porém, está ligado às ideias de “purificação” da Liga das Sombras, sob a liderança de Ra’s Al Ghul: Gotham iria se consumir por dentro, desencadeando uma onda de pavor e violência entre a população. Com a ajuda de Gordon (Gary Oldman), Lucius Fox (Morgan Freeman), o mordomo Alfred (Michael Caine) e de sua paixão (desde a infância) Rachel Dawes (Katie Holmes), Batman consegue frear os intentos de destruição de Gotham por parte da Liga das Sombras: mas outro vilão surge ao final do filme, o Coringa.

Em 2008, Nolan retornou às telas com Batman – O Cavaleiro das Trevas. Para mim, o melhor filme de super-heróis já feito no Cinema. Se no primeiro filme Nolan teve de gastar bastante tempo para desenvolver a figura de Bruce Wayne, agora a questão central é Gotham em si. A corrupção continua, mas dessa vez entra o elemento “mundo-cão” na jogada, representado pelo Coringa (atuação impecável que rendeu Oscar post-mortem a Heath Ledger). Existem pessoas que nascem com o desejo de destruição, sem ter um motivo aparente, e que apenas querem rir de tudo, sabendo que a vida é uma piada: esse é o caso do Coringa. Com suas cicatrizes na boca, a figura do piadista já é um clássico na história do cinema: a cena em que ele mata o capanga enfiando o lápis em seu olho é impagável, sua frase “Why so serious?” já estampa camisetas há uns anos, e seus atos inconsequentes aliados ao humor fizeram do Coringa de Ledger uma personagem muito superior a de Nicholson, a meu ver.  Para combater os problemas da cidade legalmente, temos a figura de Harvey Dent (Aaron Eckhart), o destemido promotor tenta acabar tanto com os crimes dentro da Polícia quanto os sérios problemas que assolam Gotham. Bruce Wayne, novamente, se vê na obrigação de usar o símbolo do Morcego (embora esteja pensando em abandonar a vida de combate aos crimes) para ajudar a cidade e, também, defender sua amada Rachel Dawes (agora interpretada por Maggie Gyllenhaal) – que namora o promotor Dent. Com as reviravoltas do filme, o Coringa consegue mostrar a Harvey Dent que ninguém está a salvo, todos têm seu lado bom e ruim, e que tudo é uma questão de perspectiva, apenas: para, definitivamente, fazer Dent entender isso, Coringa sequestra a ele e a Rachel, matando a garota e queimando metade do rosto do promotor: nascia o Duas-Caras. Desiludido com o fato de, apesar de ter lutado para o bem, ter se tornado vítima, Duas-Caras tenta se vingar do representante da polícia de Gotham, o comissário Gordon. Contudo, Batman chega ao local onde Dent tentava matar Gordon e seu filho e os salva, causando indiretamente a morte do promotor. Diante desses acontecimentos, o filme acaba com o Morcego tendo de sumir de vista, sabendo que seria acusado de ter matado Harvey Dent e combater o crime à margem da lei.

Então chegamos ao novo filme de Nolan, Batman – O Cavaleiro das Trevas Ressurge (2012), que assisti hoje. O filme aterrissou nos cinemas com status de “um dos melhores filmes do ano”, “ a maior obra de super-heróis já feita”, “a melhor parte da trilogia” etc. Porém, o que vi na tela foi um ato de covardia do Sr. Nolan. Ele vinha construindo uma obra praticamente impecável, os dois filmes anteriores eram ótimos e originais, mas realizou um desfecho fraco, repetitivo e sem motivo aparente (creio que só fizeram esse filme para lucrar mesmo). Batman – O Cavaleiro das Trevas Ressurge sofre do mesmo mal de O Espetacular Homem-Aranha, o mal do “eu já vi isso antes, mas melhor”. E estamos falando, no caso do Batman, dos mesmos atores e mesmo diretor! Não sei o que se passou pela cabeça de Nolan, mas ele deve ter achado o seguinte: “Eu amo Ra’s Al Ghul. E se, ao invés de explorarmos o riquíssimo universo de Batman, com várias ideias e personagens bacanas, nós fizermos algo que conecte o primeiro filme ao terceiro? Seria genial, não”? Respondo: NÃO. Nolan praticamente refilmou o primeiro Batman, acrescentando personagens sem função à trama. Lembra da história da destruição de Gotham pela Liga das Sombras? Pois é, é a mesma coisa agora! Mas com Bane no lugar de Ghul. O Bane, interpretado pelo bom Tom Hardy, do filme de Nolan não tem muito a ver com os quadrinhos (não há o Veneno), mas conta com algo inusitado: sua ridícula voz que sai pela máscara. Sem brincadeiras, quando Bane fala, lembra o Geleia do Caça-Fantasmas: o discurso dele em frente ao tribunal, congresso – sei lá – perde totalmente a força pois dá vontade de rir de sua voz: lamentável esse descuido. A única coisa que realmente lembra os quadrinhos (aquele famoso problema na coluna que Bane causa ao Morcego), é a belíssima primeira briga entre ele e o Batman: sem trilha de fundo, a cena é esteticamente brilhante. Temos também Selina Kyle (que nunca é chamada de Mulher-gato, sabe-se lá porquê), interpretada pela belíssima Anne Hathaway, que, apesar do esforço de Nolan em tentar encaixá-la de algum modo à narrativa, mostra-se totalmente descartável: está claro que só foi posta no filme por que o diretor quis “brilhantemente” usar mais alguém da mitologia do Batman (sem contar que Nolan adora usar dois vilões em todos os filmes do Morcego); porém, ver a Mulher-Gato arrebitada na bat-moto é maravilhoso, e deve ser a melhor coisa desse filme. Por falar em bat-coisas, nesse filme somos apresentados a mais um equipamento revolucionário do bat-arsenal, a bat-nave, que mais parece uma bat-barata... Ela tem papel crucial no filme, principalmente no final. 

Sem estragar a surpresa de quem ainda não viu, fecho dizendo: Nolan filmes dois Batmans, apenas os dois primeiros. Esse terceiro, apesar de ser um grande filme de ação, não faz jus ao Morcego e à própria obra do diretor. Digo isso como fã declarado do Batman: foi decepcionante ver que Nolan buscou uma zona de conforto para encerrar sua trilogia. Tinha tudo para ser bom, mas não foi. Se ele tivesse invertido a ordem dos dois últimos filmes, teria ficado perfeito, mas Nolan optou por ignorar (sim, ignorar) praticamente todo o segundo filme: afinal, a personagem principal da trilogia é quem? Gotham? Para com isso... Espero, sinceramente, que a Warner não retome o Batman do ponto de onde esse terceiro filme acaba, pois mais um herói (prodígio) foi descaracterizado. Já até imagino o roteiro de um quarto filme: Gotham correrá o risco de ser destruída por mais alguém da Liga das Sombras. (Por que sempre Gotham e apenas Gotham? Só ela não presta no mundo?). Enfim, Nolan se despede de seu Batman com dois acertos contra um erro: agora ele pode voltar a fazer filmes originais. Sem Ra’s Al Ghul neles, de preferência.

Porém, apesar do desfecho fraco, Nolan foi responsável por fazer os melhores filmes do Morcego. Tim Burton contribuiu trazendo super-heróis às telas, mas Nolan tornou tudo adulto, mostrando que (apesar do último filme) é possível fazer filmes de heróis com inteligência e competência. Ainda bem!

Alex Martire



Valente, 2012.



Pessoalmente, eu estava muito ansioso para ver essa nova animação vinda do trabalho conjunto dos estúdios Disney e Pixar. No Ocidente, esses estúdios ainda dominam a arte da animação, mesmo com a Dreamworks fazendo um trabalho competente e tentando alcançar um lugar entre as duas. No Oriente, por sua vez, temos o fantástico Studio Ghibli no Japão: responsável por praticamente todas as animações mais famosas orientais que chegam até aqui, e conta com um nome de peso: Hayao Miyazaki - homem de um trabalho impecável. A Disney e a Pixar atualmente não contam com nomes tão conhecidos entre seus diretores, nomes que se tornam quase sinônimos de suas empresas (como Miyazaki), e talvez por isso mesmo as obras da Pixar (que produziu Valente) sejam bastante "idênticas" quando observamos aspectos gerais como design de personagens e desenvolvimento de histórias. Ghibli leva vantagem nesse aspecto: sabemos que uma obra do Miyazaki é do Miyazaki e não de Isao Takahata (Meus Vizinhos Os Yamadas, 1998), é um trabalho mais autoral. Porém, isso não tira o mérito da Disney/Pixar: optaram por padronizar suas animações em nome de um estúdio. Mas mantiveram a qualidade, é isso o que importa.

Valente é dirigido por Mark Andrews e Brenda Chapman (a primeira mulher a dirigir uma animação para um estúdio grande com O Príncipe do Egito, de 1998). Desde as primeiras imagens e vídeos, deu a impressão de que seria algo parecido com Coração Valente (sem a violência, claro): gaitas-de-fole, florestas, kilts e ela... a linda princesa Merida: uma das personagens mais bonitas já criadas em animação, com olhos azuis e cabelos de fogo. Mas a história, embora passada na Escócia (que em nenhum momento tem o nome citado), não está focada em batalhas medievais: é, essencialmente, um drama familiar. A trama não é complicada: a princesa Merida, desde criança, tem o espírito aventureiro, gosta de arco e flecha e de correr na floresta, ela não se adapta à educação feminina que sua mãe Elinor tenta lhe impor -  está mais ligada ao pai, o rei Fergus, que faz vista grossa para o jeito "moleque" da filha; os anos passam, nascem os irmãos trigêmeos e chega a fatídica idade de se casar: sua mãe convida três clãs vizinhos para um torneio onde os primogênitos disputariam a mão de Merida - a menina não aceita, discute com a rainha e foge, indo encontrar uma bruxa no meio da floresta que iria, literalmente, mudar a mentalidade de sua mãe. Contar mais do que isso seria estragar o prazer dos que ainda não assistiram.

Como disse, é uma história centrada na família. Não há aventuras pelo território, com grandes descobertas e perigos: Valente é uma animação mais ousada ao abdicar dessa facilidade (pois, convenhamos, seria muito mais fácil colocar a princesa em meia dúzia de enrascadas e fazê-la se perder na floresta): toda a história se passa dentro do castelo e nos arredores, nada muito distante ou solitário. Obviamente, é uma história de amor, como quase todas as animações da Disney e Pixar, mas de um amor entre filha e mãe, mostrando que a principal mudança que pode ocorrer na vida das pessoas é a interna, não aquela que carregamos por fora. Em alguns aspectos, Valente é quase uma animação feminista: Merida é criada a vida toda para se portar como uma mulher que um dia será rainha, e que deve obedecer aos caprichos dos pais para se casar com o melhor pretendente possível, não importando se há amor ou não - contudo, a garota se revolta com os padrões de educação e com seu "papel de mulher" submissa, tentando de todas as formas mudar a tradição baseada nos homens, os ursos ferozes.

Do ponto de vista técnico, Valente é inebriante. Nunca vi uma paisagem natural tão bem caracterizada em animação como a desse filme. Não tenho ideia de qual software usaram para fazê-la (talvez o Vue?), mas o resultado ficou magnífico, juntamente com toda a ambientação e sonorização da floresta e riachos. O sistema de física em animações tem melhorado significativamente com o passar dos anos e fica praticamente real ver um urso de não sei quantas toneladas se movendo e caminhando em duas pernas, sem contar o show à parte que são os cabelos ruivos de Merida: reparem como são naturais - resultado maravilhoso.

De "problemas" em Valente, só achei um, que está ligado ao fato de eu ser um historiador e, como tal, ser extremamente chato com anacronismos: o filme é um samba do crioulo doido no aspecto histórico/cronológico. Estamos numa Escócia culturalmente céltica, mas que tem castelos da Baixa Idade Média (construídos com pedras), homens vestindo kilts (que surgiram apenas no século XVI) e, em um determinado momento, os clãs dizem que lutaram contra romanos e vikings: ataque cardíaco iminente! Há quase 10 séculos misturados em Valente, porém,  é claro que a intenção não era retratar a Escócia real, mas usar um reino como base para uma história de relacionamento entre mãe e filha. Nisso, Valente é impecável, convence e diverte. Certamente estará indicada ao Oscar 2013 e tem tudo para ganhar a estatueta: será merecido se levar!

(Como sempre, há um curta da Pixar antes do filme: é o La Luna, que concorreu ao Oscar esse ano; muito poético e delicado, mostra uma maneira nova de se observar as fases da lua: lindo)

Alex Martire



Rumo à felicidade, 1950.



No início, anuncia-se, de maneira quase indiferente, a morte da esposa e da filha a Stig Eriksson, o marido. A sequência seguinte poderia ser a cena de encerramento, em que o maestro e amigo, interpretado pelo ator e também diretor Victor Sjöström (o mesmo ator do incrível Morangos Silvestres) consola o recém-viúvo. Porém, entre os quatro minutos iniciais e a cena final, há o miolo, apresentado na forma de uma grande elipse, que constrói o curso do relacionamento entre os dois músicos ao som da Ode à Alegria da Nona de Beethoven.

Alguns que escreveram sobre esta obra a consideraram marcadamente banal; um mero ensaio de temáticas que seriam melhor desenvolvidas por Bergman em outros filmes, como Uma lição de amor e, sobretudo, em Cenas de um casamento. Outros lembram que Bergman estava no meio de uma separação amorosa na época das filmagens (seu segundo divórcio, de vários que ainda viriam) o que explicaria muita coisa. E não deixam de ter certa razão. Se considerarmos o miolo, trata-se de um roteiro bastante banal realmente: um casal de músicos violinistas pertencentes a uma mesma orquestra, sem grandes posses, em constantes dificuldades financeiras, sem grande talento no exercício do seu ofício, sem grande carisma, um marido bastante dependente e imaturo que tem uma jovem amante, uma esposa bastante compreensiva, que busca cuidar dos filhos, que já foi casada e que já abortou, que ama Sig, um casal que passa por crises em seu relacionamento. Nada realmente de especial.

Esta digressão de aproximadamente uma hora e vinte minutos, porém, apesar de compor um arco muito bem resolvido e construído, flertando ora com o melodrama ora com a poesia, com seus excelentes momentos, é apenas o instrumento pelo qual se acessa o significado da dor de Sig, sobretudo nos minutos iniciais, e as palavras de consolo do maestro, na cena final. O convívio com o cotidiano da vida do casal acessa o conteúdo daquilo para o que inicialmente éramos indiferentes, à maneira de um mecanismo empático. O menino é a solidão de Sig, mas é também a de Bergman, uma solidão que transborda da Lanterna mágica, sua autobiografia, de seus problemas familiares, do difícil convívio com seu pai, das suas brigas com Deus – a constante constatação de que estamos sozinhos.

A mediocridade de Sig como violinista, que falha barbaramente ao tentar o cargo de solista, seria então a do jovem diretor, em um dos primeiros filmes de sua longa carreira? Quando filmar é um modo de alcançar as esquinas mais sombrias da alma, Bergman é hábil ao usar como argamassa da produção artística os seus demônios privados.

Quem lê estas anotações deve estar curioso quanto ao título, Rumo à felicidade (Till Glädje), pois seria possível se argumentar a esta altura que não se trata de uma história propriamente feliz, mas pesada e melancólica. Retome-se, porém, a ideia de que o argumento do filme reside em suas extremidades, e, se a música de fundo é, não impunemente, a Ode à alegria, a conclusão é a gratidão pela vida, aquela que não se expressa perfeitamente pela linguagem das palavras.

O papel da música, aliás, parece ser central em expressiva parte da obra do diretor sueco. Um exemplo significativo: em O sétimo selo, a Morte declama um trecho do capítulo oitavo do livro das revelações ao som da cantata Carmina Burana, de 1937 – que é a primeira parte da trilogia composta pelo alemão Carl Orff a partir do codex de poesia medieval, formada também pela Catuli Carmina, de 1943, e pela Trionfi dell’Afrodite, de 1952. Em seu livro Imagens, Bergman conta que a ideia do filme partiu da cantata:

Carmina Burana tem como base canções de viajantes medievais, dos anos da peste e da guerra, quando bandos de gente sem teto percorriam o país (...) A idéia dessa gente que vivia a queda da civilização e da cultura (...) achei ser matéria sedutora e, um dia, escutando o coro final (...) veio-me esta idéia: meu próximo filme tratará deste tema”.


A música é também o tema de fundo de Rumo à felicidade e, a partir destas considerações, é possível se localizar precisamente o tom de gratidão, a que nos referimos, que se imprime à obra: depois de saber da morte de Marta, o maestro explica que a música é uma questão de alegria. Uma alegria que não se expressa em risos, ou a felicidade que diz “Eu sou feliz”, mas que é uma forma de felicidade tão imensa, tão particular, tão espiritual que se encontra além da dor e do desespero sem limites. Uma felicidade além de toda compreensão.

It's a question of joy, you see, not a joy that express itself in laughter, or a joy that says ‘I am happy’. What I mean is a joy that is so great - so particular, that it lies beyond pain and boundless despair. You understand, it's a joy beyond understanding. It's... well, I...

Leonardo Branco


Guerra ao Terror, 2008.


Já assisti a esse filme algumas vezes. Ele é um dos melhores filmes de guerra que já vi, e um dos que mais gosto de rever. Para mim, "Guerra ao Terror" entrou para o hall das grandes obras de guerra, ficando lado a lado com "Platoon", "Apocalypse Now" e "Nascido para Matar". Acho que já disse isso antes, mas reafirmo: filmes de guerra bons são os que exploram o lado psicológico dos soldados. "Guerra ao terror" faz isso com maestria.

Dirigido por Kathryn Bigelow, mais conhecida por "ex-mulher do James Cameron", "Guerra ao Terror" desbancou "Avatar" (que é, digamos, algo não muito difícil) e levou o Oscar de Melhor Filme em 2010. Da lista de indicados daquele ano, "Guerra ao Terror" era praticamente um filme desconhecido do grande público e também sofria com o fato de ter sido lançado em setembro de 2008, em Veneza - e nos EUA apenas em março de 2009, data muito longe dos filmes "sensações" que costumam estrear próximos ao Oscar. No Brasil, se não me falha a memória, ele foi lançado em DVD antes do Oscar e depois voltou às salas de cinema quando ganhou o prêmio. "Guerra ao Terror" conseguiu vencer outro forte candidato daquele ano, o fenomenal "Bastardos Inglórios", a redenção de Tarantino após o chatérrimo "À Prova de Morte" (2007). Se Tarantino tivesse ganho, seria com toda a glória possível (desculpem o trocadilho...), mas o prêmio ficou em boas mãos: o "filme menor" sobre a guerra no Iraque levou 6 estatuetas.

Como disse, já o assisti algumas vezes e, para mim, um mérito grandioso de "Guerra ao Terror" é que ele consegue me manter tenso em todas as vezes. Ele todo basicamente é construído sobre esse clima de tensão. Nos primeiros 5 minutos já somos observadores do desarmamento de uma bomba numa praça de Bagdá, com o sargento Thompson (em uma curta aparição de Guy Pearce) colocando sua vida em risco, e fracassando. Com sua morte, somos apresentados ao novo sargento do pelotão Delta anti-bomba, William James (o competente Jeremy Renner). Ele é o porra-louca do filme, o cara que parece não dar valor algum à própria vida (o cartaz acima é ele desarmando um probleminha): ou talvez ela saiba o significado da vida e tenha consciência de que viver no Iraque em guerra é apenas uma contagem regressiva para a morte. Apesar de parecer desleixado diante de seus outros dois companheiros de equipe, James é muito bom no que faz, e coleciona uma caixa com lembranças de todas as bombas que desarmou (mais de 800), e quando o Coronel Reed pergunta qual o melhor jeito de desarmar uma bomba, James responde: "Do jeito em que eu não morra". 

James chega ao esquadrão faltando um pouco mais de 30 dias para o revesamento de soldados, e conta com duas figuras distintas na equipe: Sargento Sanborn e Especialista Eldridge. Sanborn é o sujeito centrado, austero, que quer cumprir as missões dos dias restantes da melhor maneira possível, mantendo todos em segurança. Já Eldridge é aquele cara que sempre está assustado, com medo de que algo de pior aconteça. Ele também é obrigado a conviver com a morte do sargento Thompson ocorrida no começo do filme: como explica para o psicólogo no quartel, se ele tivesse puxado o gatilho e matado o iraquiano que tinha um celular em mãos (e que acabou por detonar a bomba), Thompson estaria vivo agora, mas ele hesitou e isso foi o suficiente para perderem um homem em campo. Seu trauma o acompanha por todo o filme... contudo, é superado na cena da emboscada no meio do deserto, em que se vê diante da mesma situação: ter de atirar em um suspeito para preservar a vida dos colegas. 

O filme todo é feito em contagem regressiva, tendo as missões diárias se tornando mais e mais perigosas de acordo com o restante de dias para saírem do Iraque. A movimentação das câmeras também é um atrativo à parte: não há nada de original nela, mas a opção de, em muitas tomadas, usar a câmera em mãos para acompanhar os soldados dá um toque quase documental a tudo (e é uma técnica que vem sendo bastante utilizada em jogos de videogame como "Call of Duty" ou "Battlefield"). 

Por fim, o filme se encerra de acordo com uma frase que Eldridge diz a James após ser baleado na perna: "você coloca nossas vidas em risco por ter necessidade de adrenalina". Quando James é dispensado e retorna para a mulher e o menino bebê que tem em casa, se vê deslocado do mundo. Ida ao mercado, limpar a calha de casa: nada disso o satisfaz, não é a vida que escolheu para si, não é aquilo que sabe fazer. Então ele resolve voltar ao inferno da guerra, volta ao Iraque com um sorriso no rosto. Algumas pessoas têm necessidade de loucura. E esse é o caso do sargento de primeira classe William James.

Alex Martire



 
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