(Dessa vez, uma impressão um pouco diferente, bastante fundamentada nos debates acadêmicos e que, assim como o filme, continua atual quase três anos após sua publicação no Valor Econômico. Agradeço ao Moisés Baptista e à Denise Rodrigues por liberarem seu artigo também ao CineImpressões!)
Fonte: Missão dada é missão cumprida: Artigo sobre o Filme "Tropa de Elite 2". Valor Econômico, São Paulo/SP, p. 22 - 23, 29 out. 2010.
Cremos que é possível dizer no início deste breve artigo que ficção e realidade caminham de mãos dadas nas salas dos cinemas do país.
"Tropa de Elite 2" traz à tona uma série de reflexões capazes de ser aplicadas na análise da realidade brasileira. Ao passo que o primeiro longa da série dirigido por José Padilha focou a questão do monopólio legítimo do uso da força pelo Estado, corporificado pela atuação do Bope, o novo filme assume nuances mais complexas. Se no primeiro filme de Padilha são apresentados ao espectador o universo do crime, a corrupção policial, as proximidades e os cruzamentos entre esses dois mundos, "Tropa de Elite 2" abre espaço para um debate mais complexo, voltado para a teia de relações e dos jogos de interesse presentes no sistema político e na segurança pública da Cidade Maravilhosa. Entretanto, é possível que em cada canto deste país os espectadores associem os eventos e situações à realidade dos seus bairros, municípios e Estados.
Ao acompanharmos os fatos apresentados na trama é possível percebermos a "caminhada" da corrupção, percorrendo diversos espaços institucionais, como o sistema prisional, a corporação policial, escritórios de políticos, e chegando às comunidades dos morros. No entanto, há uma indicação de que a "caminhada" tem início na arena do poder político estatal. A corrupção que antes era visualizada como uma ramificação do sistema de segurança pública (um batalhão específico do corpo policial, o "batalhão dos corruptos") agora se espraia para a instância da representação política do Estado. Séculos atrás, Thomas Hobbes atribuiu ao Estado o papel de implementar o contrato social capaz de deter em sua essência a materialização do homem como "o lobo do próprio homem". No século XXI, embora sob o formato de obra fictícia, "Tropa de Elite 2" apresenta o Estado como a mola mestra que retroalimenta as atitudes ilícitas, com fins meramente particulares, nos setores mais próximos à população, ou seja, o avesso do que foi proposto pelo filósofo inglês.
Em resposta à reivindicação apresentada pelo personagem André Matias (André Ramiro), sobre o descaso e o abandono enfrentados pelos policiais do Bope, o protagonista consagrado pelo público, Coronel Nascimento, parte para a implementação de decisões que seriam capazes de "corrigir o sistema". O Bope é reestruturado em armas, treinamento e veículos blindados. O tráfico é expulso da comunidade, impedindo que os policiais corruptos arrecadem o "arrego" de traficantes.
Antes vista como ramificação do sistema de segurança pública, a
corrupção agora se espraia para a representação política do Estado
Apesar de seus esforços, Nascimento descobre que sua estratégia falhou em deter o ciclo de reprodução da corrupção e da violência urbana, especialmente contra os membros das comunidades que, agora, em troca do "cenário de paz", são obrigados a "negociar" seus bens de consumo e meios de sobrevivência com as milícias. Recomeça o ciclo, agora com mais força, sob o controle dos policiais corruptos aliados aos candidatos a cargos políticos. É possível que essa seja uma das ideias mais importantes do filme, a de que investimentos pesados na construção de presídios e na infraestrutura policial não são suficientes quando pensados de maneira isolada e imediatista. Algo que ainda não foi compreendido totalmente é a concepção de que os direitos são indivisíveis e que as políticas sociais necessitam ser pensadas em rede, não de maneira pontual.
De forma semelhante ao primeiro longa da série, Padilha direciona, na narrativa de Nascimento, provocações aos militantes "de esquerda" que defendem os direitos humanos. Contudo, nas entrelinhas, o filme demonstra aos espectadores mais atentos que o entrave entre o discurso de defesa dos direitos humanos e o Estado é fatalmente regido por jogos de interesse capazes de limitar a aproximação entre a esfera real e ideal da proteção aos direitos.
A partir desse ponto, é possível reconhecer que, de forma paradoxal, o Estado assume tanto o papel de provedor de direitos da sociedade quanto de perpetrador de violações aos direitos humanos. As circunstâncias e os objetivos em questão é que determinarão qual será o papel assumido. É aí que se encontra o ponto-chave do filme. O próprio sistema estatal assume um papel violador sobre a população, quando deveria atuar como seu protetor. E as consequências são as mesmas apresentadas pelo discurso de defesa dos direitos humanos: a dificuldade de implementação prática da democracia e da proteção aos direitos dos indivíduos. "Tropa de Elite 2" aponta para uma substituição do bem comum pela rede de interesses e favorecimentos próprios de uma parcela dos representantes do poder estatal.
Ao passo que o primeiro longa trouxe à discussão as violações e abusos contra as pessoas pertencentes aos extratos mais vulneráveis (em especial, os moradores dos morros cariocas), a continuação traz como complemento o apoio de parte da população à atuação mais enérgica por parte da polícia. Há uma identificação do público que, na realidade brasileira, clama pela atuação enérgica da polícia, pela proliferação das unidades prisionais e pela adoção de penas mais duras, com o mesmo público que na ficção torna legítima a atuação violenta e abusiva da polícia ao aclamar Nascimento como herói, por ter assumido a responsabilidade pela execução de detentos de Bangu I.
Em nossa opinião, o ponto de destaque do filme é a busca do protagonista em identificar o motivo pelo qual "o sistema", repleto de ilegalidades, é difícil de ser quebrado. Por vezes, da mesma forma, buscamos uma explicação para os escândalos que afloram das esferas de atuação dos nossos representantes políticos. É possível que a permanência desse sistema de corrupção institucionalizada esteja na herança brasileira, enraizada do mais baixo ao mais alto escalão pela defesa dos objetivos individuais, pela possibilidade de recorrer ao "jeitinho" e aos favores daqueles que pertencem às classes mais privilegiadas hierarquicamente.
Como afirma o antropólogo Roberto DaMatta, possivelmente a aplicação do "você sabe com quem está falando?", que desqualifica as regras e decretos universalizantes, foi espraiada para o universo das relações sociais cotidianas para a esfera decisória, da política em si mesma. E isso com a legitimidade popular corporificada pelo voto. Fazendo alusão ao subtítulo de "Tropa de Elite 2", talvez nosso inimigo também seja outro. Talvez sejamos inimigos de nós mesmos. E, nesse processo, a decisão popular é determinante, para o bem ou para o mal.
Ao confrontarmos realidade e ficção, reconhecemos as diversas missões delegadas à sociedade brasileira: a necessidade de aproximação entre o discurso em prol da defesa dos direitos humanos dos cidadãos e a atuação dos representantes do Estado; o imperativo de afastarmos o risco de transmutação dos anti-heróis em mocinhos, dos "Fábios" e "Russos" em exemplos; a obrigação de definirmos nossos "heróis" e representantes com base em princípios éticos e democráticos, que contribuam para a efetividade prática do bem comum e da igualdade de todos perante a lei. Quiçá, um dia, o Brasil cumpra suas inúmeras missões. Porque, afinal, "missão dada" deveria ser "missão cumprida".
Denise Rodrigues Mestre em Direitos Humanos, USP
Moisés Baptista Sociólogo, USP
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