Felix Van Groeningen é um nome que eu nunca havia ouvido falar. O diretor belga tem 5 filmes no currículo (todos com notas muito boas no IMDB) e, agora, ganha um destaque maior por ter sua obra mais recente, The Broken Circle Breakdown, como pré-candidata ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2014. Porém, de agora em diante ficarei mais atento ao seu trabalho, pois competência Felix Van Groeningen tem de sobra!
The Broken Circle Breakdown é um filme que, ao mesmo tempo, parece tão familiar e tão original a quem assiste. Contudo, creio que sua maior qualidade seja a de casar a tristeza profunda que impera no filme com a sutileza de momentos felizes e, ponto para os roteiristas, música bluegrass de alta qualidade. O filme não tem uma estrutura fácil, pois é montado em forma helicoidal, ou seja, a todo momento há passagens mescladas do passado, presente e futuro, mas é justamente aí que reside sua força: ele deixa o espectador curioso, tentando adivinhar o que está se passando. E, além de instigar a curiosidade, The Broken Circle Breakdown também arranca algumas lágrimas (ou muitas) de quem assiste - mas sem jamais se tornar apelativo e cair no dramalhão.
Uma história de alegria e tristeza. Acompanhamos a vida do casal Didier - tocador de banjo - (brilhantemente interpretado por Johan Heldenbergh) e sua amada (e carismática e cheia de vida) Elise (a bela atriz Veerle Baetens). Embora, como dito, não sendo linear, podemos acompanhar todo o ciclo que dá título ao filme, vendo o primeiro encontro e acompanhando o desfecho de suas vidas. A união do casal é marcada pela vinda de sua filha, Maybelle, que representa uma negação, uma alegria e uma preocupação. O filme começa justamente com o diagnóstico de câncer na garota de 7 anos mas, ao invés de ficar apenas focado nisso, The Broken Circle Breakdown vai além e entra no campo religioso: Didier é ateu, Elise é cristã. No entanto, evitando todos os clichês possíveis, o filme torna-se inteligentíssimo ao abordar esses temas (a cena de Didier explanando à esposa como teria de explicar a morte de um passarinho à filha é genial). A obra entra em um crescendo que nos faz querer ver mais e mais da história, em nenhum momento se tornando cansativa. E, um pouco antes da metade da projeção, ocorre um marco que afeta a vida do casal de músicos e vai minguando a felicidade.
Para não entrar em mais detalhes sobre o filme, vale destacar aqui a estonteante fotografia de The Broken Circle Breakdown: simples, como a vida do casal (as cenas de nudez no campo são bastante poéticas), e que valoriza as tatuagens de Elise, que faz questão de marcar na pele cada etapa (boa e ruim) de sua existência. As tatuagens tornam Elise uma figura muito interessante, e ver sua pele nua é um exercício de decodificação. Do mesmo modo, as músicas são elemento essencial na narrativa: o casal canta junto com os amigos da banda, e muitas vezes cantam aquilo que aconteceu em suas vidas: a parte em que Elise canta sobre a filha que quer ver a mãe é tocante, e a cena quase final do casal cantando sobre o amor com Elise ignorando Didier é de uma dor gigantesca. Mas a música, que inicia o filme, chega a fechá-lo e nos mostra uma das cenas mais belas já feitas até hoje! É impossível ficar apático ao momento: é lindamente triste, embora soando alegre - é um paradoxo que nos faz repensar muitas coisas sobre o ato de existir.
E a existência é o cerne de The Broken Circle Breakdown. Existimos por causa de um deus - como pensa Elise - ou somos um acaso surgido de uma explosão como pensa Didier? A verdade é que ateus e teístas nem sempre conseguem um convívio tranquilo e isso tende a piorar quando nasce uma filha e uma tristeza abala nossas vidas. Elise e Didier entram em uma discussão séria sobre almas e vida pós-morte e isso gera um dos momentos inesquecíveis da obra: o discurso acalorado de Didier durante um show sobre a proibição de pesquisa com células-tronco nos EUA (durante o governo Bush) - dita como algo que vai contra Deus - e a figura maligna de Deus retratado na Bíblia. Quando a tristeza abala a família, Didier encontra em seu ateísmo a razão de continuar a viver; Elize, por sua vez, busca na espiritualidade o seu conforto. A situação torna-se insustentável e o círculo quebrado.
The Broken Circle Breakdown é um belíssimo filme em todos os sentidos. Um dos melhores que vi esse ano. Torço para que chegue a concorrer ao Oscar 2014: é um reconhecimento à altura de tão grande obra. Um filme marcante.
Há filmes que simplesmente se tornam desnecessários quando vistos com mais atenção. Em 2003, os irmãos Wachowski mostraram isso ao jogarem no mundo o seu Matrix Reloaded: sem acrescentar praticamente nada de útil à história central, o filme foi claramente feito com o intento de se montar uma trilogia. Confesso que até estava confiante quando Peter Jackson anunciou que a adaptação do livro O Hobbit seria em duas partes - embora achando que um filme de 4 horas desse conta, até que repensei e acabei concordando com a divisão em duas partes. Elas seriam suficientes. Porém, pouco antes da estréia de O Hobbit: Uma Jornada Inesperada (2012), o diretor anunciou que a obra ganharia mais um capítulo, formando a trilogia (numa clara tentativa de se igualar ao Senhor dos Anéis (2001-2003). Há um problema central nessa escolha: o livro sobre as aventuras de Bilbo Bolseiro tem cerca de 1/4 do tamanho do Senhor dos Anéis. Desse modo, ficou claro desde o começo que o diretor Peter Jackson tomaria liberdades maiores do que as que tomou na trilogia anterior e teria de inventar passagens para produzir 3 filmes com quase 3 horas de duração cada.
Quando assisti ao O Hobbit: Uma Jornada Inesperada, tive a surpresa de que ocorreu justamente o contrário: o filme é extremamente longo e cansativo não por causa de invencionices, mas justamente pela decisão do diretor de simplesmente ser literal demais, levando às telas cada trecho do livro. Dessa vez, porém, com a simples justificativa de que era necessário transformar 2 filmes em 3, Jackson assassina finalmente a obra de Tolkien, deixando pouquíssimos elementos originais na tela e, o pior, errando a mão em cada elemento novo que traz ao público. O Hobbit: A Desolação de Smaugé um filme que não precisaria ter sido feito e, tornando-se real, é uma das piores coisas lançadas nesse já fraquíssimo ano cinematográfico de 2013.
Fazendo um esforço hercúleo, pude enxergar dois pontos positivos no filme: 1) em uma passagem na Floresta Negra (Mirkwood), quando os anões são atacados por aranhas gigantes, Bilbo coloca o Anel e passa a ouvir vozes dos aracnídeos - isso é algo que reclamei sobre a ausência no primeiro filme, já que os animais falam no livro... contudo, no filme, só falam quando estão no "outro lado", quando Bilbo bota o Anel e vê o mundo diferente; 2) Smaug é realmente impressionante do ponto de vista técnico: num filme em que a computação gráfica é, no geral, muito ruim (claramente percebe-se que certos personagens são feitos em CG), o dragão surge como uma grata surpresa, mas deixa a questão: ele só parece impressionante porque todas as passagens ocorrem em ambientes de pouca luz? De qualquer modo, a captação facial e o vozeirão de Benedict Cumberbatch, é um passo além do belo trabalho que vem sendo realizado desde o Gollum do Senhor dos Anéis.
Afora esses pontos acima mencionados, o filme é um desastre e deixa-nos realmente desolados... Peter Jackson esforça-se para acabar de vez com a obra original ao optar por um tom extremamente sombrio nesse segundo filme. O pior é que é um tom sombrio que simplesmente não reflete nas personagens: você não consegue sentir angústia ou sofrimento neles e não sei se isso é falha de roteiro (que acredito ser) ou falha de interpretação (que também não descarto). A impressão que me fica é a de que Peter Jackson desencanou nessa trilogia do Hobbit: ele fez um trabalho tão bom nos filmes anteriores que, me parece, isso justifica todas as suas faltas para com os filmes novos.
E o que dizer de Beorn, uma figura interessante no livro e que, aqui, não tem a sua presença justificada? Seu aparecimento é tão rápido e desconexo que não dá pra engolir a retirada de Tom Bombadil da trilogia anterior: se fosse pra fazer algo tão superficial quanto fizeram com Beorn, deixassem o velho Tom em cena. Enfim, Beorn chega, fala umas 5 frases, e some parta não voltar. Sem contar que sua aparição como urso é muito grosseira, deixando claro que empregaram uma computação gráfica que não está à altura do orçamento gigantesco dos filmes. Outro ponto extremamente negativo no filme é a figura da belíssima-semi-deusa Evangeline Lilly (a Kate de Lost) como a elfa Tauriel: não tenho nada contra a inserção de personagens novos no filme, porém, Tauriel não se justifica. Ela existe apenas para mostrar que é a versão feminina de Legolas e para estabelecer uma historieta paralela dentro do filme simplesmente fútil: sua paixonite pelo anão Kili. Não entendo a necessidade de se colocar elementos românticos numa história em que nada disso acontece... De qualquer modo, se for fazer, que se faça direito, e não torno tudo em um martírio aos espectadores, já que as cenas são longas demais e quebram o fraquíssimo ritmo do filme.
Muitos podem dizer que o filme tem um ritmo alucinante. Bom, se por ritmo entende-se "batalhas atrás de batalhas", então eu teria de concordar. Isso é o que mais acontece em O Hobbit: A Desolação de Smaug: batalhas, batalhas e batalhas. Batalhas que não desenvolvem o filme em nenhum aspecto. Longas batalhas que fazem a gente pensar "falta muito para acabar?". Eternas batalhas que levam o filme a seus 160 minutos de tortura. Não há tempo para se desenvolver nenhum dos personagens nesse segundo filme (lembrem-se, eram 2 filmes que se tornaram 3, então teriam de "encher linguiça" em algum momento), pois eles estão lutando a todo momento! Assistir a mais de duas horas e meia de batalhas (bem feitas e coreografadas, tenho de concordar) é cansativo demais. Temos uns 15 personagens principais em cena e não descobrimos praticamente nada deles nesse tempo.
Enfim, Peter Jackson cometeu seu segundo erro seguido em O Hobbit: A Desolação de Smaug. Acredito que o filme só concorrerá em prêmios nas categorias técnicas: não acontecerá como em O Senhor dos Anéis, em que o último filme foi coroado com o Oscar numa espécie de conjunto da obra. Essa trilogia de hobbits e anões é simplesmente ruim demais para sequer sonhar em levar algo tão valioso quanto a Pedra Arken para casa.
Foram 12 anos para que os monstros retornassem à telona. O filme original, Monstros S.A., de 2001, é uma animação tão clássica na história do cinema que nem parece que se passou tanto tempo. Já assisti ao original tantas vezes que tenho as falas marcadas na memória e, como todos, a memória da garotinha Boo. Na verdade, acho que todos queriam ver novamente a dupla Mike Wazowski e James Sullivan nos cinemas. Confesso ter acreditado que a Pixar ia lançar uma continuação pouco tempo depois do sucesso de Monstros S.A., porém, o estúdio liberou nos cinemas animações excelentes enquanto a ideia da continuação ia ganhando maturidade. Felizmente, essa mais de uma década de espera teve um resultado incrível: Universidade Monstros, para mim, conseguiu superar seu antecessor.
Dirigido pelo quase-estreante Dan Scalon (membro da Pixar há anos, mas só agora pegando uma obra de peso para dirigir), é difícil apontar algum defeito em Universidade Monstros. O filme amarra todas as suas pontas sem cair no melodrama que vem acompanhando algumas animações da Disney/Pixar há uns anos, e consegue, ao mesmo tempo, agradar novamente crianças e adultos - primeiro por seu tom debochado e caretas dos monstros; segundo, por suas piadas inteligentes e sutis, mostrando que as animações, de fato, não são algo apenas para crianças. Embora os adultos estadunidenses se identificando mais com a narrativa - pois a Universidade é nos moldes daquelas que vemos nos filmes dos EUA (repúblicas, festas, competições etc.), o filme tem o mérito de arrancar risos e sorrisos de qualquer um que já cursou uma faculdade (a "rixa" entre universidades concorrentes é muito legal). Enfim, a história volta no tempo e narra o sonho infantil de Wazowski (o "zoiudinho") de ser um Assustador, ou seja, aqueles monstros que trabalham na fábrica assustando as crianças para gerar energia elétrica. Contudo, Wazowski sempre foi alvo de piadas de seus colegas por ser baixinho e não conseguir assustar ninguém. Não desistindo de seu objetivo, o garoto cresce estudando, passa no "vestibular" e entra na Universidade Monstros. Mas sua alegria vai minguando quando descobre que, na Escola de Sustos, nem os professores acreditam que um dia ele será um assustador. Entre os colegas de Wazowski, está Randy (aquele lagarto que se torna vilão no filme antecessor) e o jovem James Sullivan - sujeito arrogante vindo de uma família famosa de assustadores. Porém, o filme engrena mesmo quando Wazowski entra para a fraternidade Oosma Kappa - formada por nerds que foram dispensados da Escola de Sustos - a fim de disputar o torneio universitário para ver quem é o maior assustador do local. Não vou estragar a surpresa do filme contando mais, mas a coisa fica ainda melhor!
Se o brilhante roteiro de Universidade Monstros é aquilo que prende o espectador na poltrona (vide a "reviravolta" no terceiro ato, uma sacada genial), o seu lado visual é exuberante. Em 12 anos a qualidade da computação gráfica deu um salto gigantesco. A perfeição alcançada nas florestas de Valente (2012) é trazida para o filme dos monstros: repare a qualidade da grama pisada pelos personagens ou as folhas coloridas das árvores. Além disso, há uma cena noturna próxima a um lago que muitas vezes você se pega perguntando: "Isso é real ou feito por computador"? Mas a Pixar é isso: ela, além de estúdio, é uma empresa que vende softwares voltados à animação - a cada filme ela se supera e coloca cenas "a mais" somente para mostrar que ela detém a tecnologia mais avançada aqui no Ocidente: é propaganda pura, mas que deixa o espectador estarrecido. Outro destaque fica por conta da iluminação do filme: não dá pra apontar falhas, tudo é praticamente real, é perfeito (como na prova de corrida no túnel repleto de ouriços-do-mar brilhantes). Para terminar os elogios à parte técnica, o filme conta com um efeito estereoscópico muito honesto: nada de coisas sendo atiradas na tela - aqui tudo é sutil, utilizando-se o 3D para dar profundidade apenas.
Para completar essa "monstruosidade" que a Pixar acaba de colocar nos cinemas, o curta-metragem O Guarda-Chuva Azul, dirigido por Saschka Unseld, é embasbacante. Juro que nunca vi uma renderização tão perfeita em minha vida: na verdade, preciso ver o making-off do curta para tirar a dúvida se algumas das cenas são em CG ou filmadas live-action. Com uma história romântica muito bela, a narrativa do guarda-chuva azul que se apaixona pela guarda-chuva vermelha provavelmente vai abocanhar alguns prêmios máximos de Animação.
Universidade Monstros beira à perfeição. Em todos os quesitos. Somente se surgir alguma animação realmente estupenda a Pixar corre o risco de perder o Oscar de Melhor Animação em 2014. Um filme obrigatório. Sem sustos.
Somente por ele já valeria a pena assistir ao filme. Mas o trabalho realizado nesse Segredos de Sangue é algo que poucas vezes foi levado aos cinemas com tamanha competência e paixão. Digo "paixão" porque se nota claramente que o diretor está em um gênero de filme, o suspense/vingança, que é a sua casa. O nome do "culpado" por esse sensacional filme lançado esse ano? Chan-wook Park.
Sim! É a estreia de Chan-wook Park no cinema ocidental (ou hollywoodiano, se preferirem). Ele é o meu diretor sul-coreano preferido, nunca neguei isso. Tampouco escondo que morro de amores pelo cinema da tríade Coreia do Sul/Japão/China: simplesmente adoro o jeito "cru" que eles apresentam na tela os seus filmes: repletos de poesia, violência e sem nenhum pudor. O cinema sul-coreano não é para qualquer um: é preciso ter estômago forte e mente aberta, pois tudo o que os realizadores imaginarem acontecerá. Chan-wook Park conseguiu levar para os EUA toda a beleza miserável de seus filmes como Oldboy (2003) e Sede de Sangue (2009). E Segredos de Sangue fica ainda melhor com um elenco que não deve em nada às interpretações excelentes dos atores sul-coreanos com quem Park já trabalhou: o filme é a prova de que, com certa liberdade dada aos realizadores e boas ideias na cabeça, é possível se fazer uma grande obra.
Embora contando apenas com três protagonistas principais, a bela e competente Mia Wasikowska (India Stoker), a mais não-tão-bela-por-causa-das-plásticas Nicole Kidman (Evelyn Stoker) e um ator que eu quase desconhecia e que foi uma grata surpresa - Matthew Goode (Charles Stoker), que também fez o papel de Ozymandias em Watchmen (2009) - Segredos de Sangue tem interpretação tão magistrais que é difícil pensar o filme com outros atores. A história toda gira em torno de India Stoker, uma garota que, ao completar 18 anos, recebe a notícia de que seu pai acabara de morrer em um acidente de carro, deixando ela e a viúva Evelyn sozinhas no mundo. Porém, essa "solidão" quase não tem tempo de se desenvolver, já que no funeral de seu pai, India conhece o tio que nunca havia visto, o Charles. O rapaz boa pinta resolve passar um tempo na casa das duas, deixando India inconformada com essa situação, uma vez que sua mãe mal estivera em luto pelo pai. Charles, por sua vez, é um sujeito estranho, mostrando-se extremamente educado e conquistando aos poucos a confiança de India ao mesmo tempo em que acontecimentos estranhos ocorrem em torno da casa da família. O relacionamento dos três vai se tornando cada vez mais sufocante até culminar em um final surpreendente.
E Chan-wook Park é isso: surpreendente. Ele consegue, sempre, dar reviravoltas nas tramas de seus filmes e nos deixar sorrindo diante de toda a bestialidade humana. E se todos os seus filmes são plasticamente estonteantes, Segredos de Sangue é deslumbrante: há diversas cenas que são "mescladas", com a imagem da tomada anterior formando a nova (particularmente, a passagem dos cabelos da Nicole Kidman para as matas do campo de caça é de tirar o fôlego). Outra característica marcante do filme é o posicionamento das câmeras: em diversos momentos ela está a meia altura, criando efeitos interessantíssimos na narrativa da obra (como na parte do parque de diversões em que India parece flutuar) e dando os viéses de cada protagonista (por exemplo, a conversa entre os três na cozinha após Charles e Evelyn voltarem das compras).
Se a linda Mia Wasikowska só tem no currículo um filme ruim - o execrável Alice no País das Maravilhas de Tim Burton (2010) - agora ela ganha, de vez, o respeito que merece entre as grandes atrizes de Hollywood. A bela australiana tem feito papéis difíceis (como a garota doente em Inquietos, de 2011, e a romântica mulher de Jane Eyre, de 2011), exigindo bastante de sua performance. É gratificante ver uma atriz que venho admirando há um tempo tornando-se um "monstro" a cada filme que faz. Mérito dela, claro. Mas mérito também de Chan-wook Park, que soube extrair de seus atores o máximo para levar às telas esse delicioso suspense.
Bem-vindo a Hollywood, Park! Só não se renda a ela: mantenha-se original em meio a tantas coisas rasas que imperam no cinema estadunidense.
Embora o cartaz diga que A Morte do Demônio será o filme mais aterrorizante que você já terá visto, isso não é 100% verdade. Mas chega muito perto! O remake do clássico de 1981 é um sopro de vida no gênero terror, que vem sendo sistematicamente destruído nos últimos anos com obras que: 1) são filmadas em primeira pessoa, com o estilo "documentário falso" inaugurado por A Bruxa de Blair, em 1999; 2) têm um grupo de amigos que vivem se divertindo e de repente são atacados por um maníaco; 3) exploram as figuras dos vampiros, lobisomens ou zumbis, mas de forma tão rasa que todos se tornam genéricos. Assim, é irônico que o novo A Morte do Demônio, uma releitura do original, seja o responsável por trazer novamente aos cinemas aquilo que os filmes de terror - na teoria - deveriam ter: o terror. Porém, antes de chegarmos em 2013, é necessário falar um pouco sobre o filme de 1981, The Evil Dead.
A Morte do Demônio original foi o filme que colocou o diretor Sam Raimi, de fato, no círculo de Hollywood. Isso não quer dizer que ele seja um excelente diretor, no entanto. Sua filmografia é bastante irregular, com filmes bem interessantes, como Darkman - Vingança sem Rosto e Um Plano Simples (1998), e a obra que, a meu ver, afundou a carreira de Raimi, apesar de ter gerado um lucro absurdo: a trilogia Homem-Aranha (2002 - 2007). Mais recentemente ele dirigiu o prelúdio de O Mágico de Oz (1939), o Oz: Mágico e Poderoso (2013), que de receber tantas críticas negativas me desanimou de ir assistir no cinema. Enfim, Sam Raimi não é o melhor cara de Hollywood, mas teve uma ideia bastante legal quando escreveu A Morte do Demônio em 1981, que acabou lhe rendendo o título de clássico do Terror. Existe, contudo, um paradoxo nesse consideração: o filme seria, realmente, um terror? Quem assiste sabe: não exatamente. A Morte do Demônio é um filme cômico, com algumas cenas bastante ridículas e um orçamento baixíssimo (US$ 375 mil) que acabou por render alguns dos efeitos especiais mais toscos já feitos em um filme de terror, com uso de bonecos e máscaras muito mal feitas. Porém, como eu disse, a ideia em si é muito boa, mesmo com um desenvolvimento ruim: um grupo de amigos vai passar férias em uma cabana abandonada próxima ao Tenesse quando acabam se deparando, no porão da residência, com o Necromicon, o Livro dos Mortos (uma referências bonita à obra de Lovecraft). Ao ler uma passagem do livro em algum dialeto/idioma antigo, o demônio é despertado na floresta e passa a tomar posse do corpo das pessoas da cabana, uma a uma. Com situações bizarras e muito sangue jorrado, o filme se desenvolve baseado na figura de Ash Williams, o querido ator-queixudo Bruce Campbell, que luta para sobreviver durante a madrugada na cabana. O filme é bastante engraçado, com atuações caricatas e maquiagens péssimas, porém, é necessário colocar o filme em seu contexto da década de 1980, quando os filmes que mais faziam sucesso eram as comédias (vide o número de clássicos dessa época que sempre assistimos com nostalgia): sempre bom lembrar que Peter Jackson também fez obras desse tipo, como Trash - Náusea Total (1987) e Fome Animal (1990).
Desde que começaram a surgir notícias sobre o remake de A Morte do Demônio, a minha preocupação era se Sam Raimi iria dirigir o filme. Para a felicidade de todos: não. Raimi apenas ficou na produção (junto com Campbell) e passou o bastão para o desconhecido uruguaio Fede Alvarez, que revitalizou a ideia de Raimi e nos entregou um grande filme de terror com um tempero a mais: o terror. Sim! Alvarez teve pulso firme e não se deixou intimidar pelo clássico que tinha em mãos e o melhorou completamente. Ainda há o grupo de amigos na cabana, mas agora existe uma profundidade maior na história: é contado o fato que levou o demônio a ficar atrelado à cabana, além de ser uma sutil metáfora sobre as dificuldades que viciados em drogas passam para se livrarem da doença (afinal, eles precisam se "libertar do demônio interno" que é esse problema). Mas o que realmente faz A Morte do Demônio um filme maravilhoso reside em seus dois pontos mais fortes: a fotografia e a violência exacerbada. O jogo de luzes nas cenas é muito bem trabalhado e logo na primeira cena já mostra a que veio, com neblinas na floresta que chegam a lembrar vagamente o Tarkovsky (não estou dizendo que é tão bom quanto, seria uma blasfêmia - apenas aponto para as semelhanças visuais), sem contar o mundo de pernas pro ar na estrada, quando o diretor opta por colocar a floresta no topo da tela e o céu embaixo. A violência, por sua vez, é aquilo que fará com que os mais sensíveis passem mal durante o filme: há muito sangue, muito desmembramento, muita aflição. Tudo o que nos faz rir no filme original agora é sério, realmente consegue mexer com o espectador. Os efeitos especiais de hoje em dia permitem que pessoas andem sem braços ou cortem as línguas ao meio, trazendo a mistura perfeita entre o terror e o horror. Contudo, nada supera a cena final: ela é a mostra perfeita do diálogo entre fotografia e cinema gore. Chove sangue e a cena externa ganha um belíssimo teor vermelho-alaranjado que se mistura com a cabana ao fundo e o demônio se arrastando: daria pra emoldurar e colocar na parede!
Com mudanças significativas no desenrolar da história - apesar de contar com algumas tomadas que são as mesmas do original - o remake de A Morte do Demônio traz um sorriso a quem adora o gênero e nos faz pensar se haverá também, tal como com o original, mais filmes sequenciais. Se não forem no estilo que o Sam Raimi dirigiu, tem tudo para fazer sucesso. A Morte do Demônio (2013) talvez seja o grande filme de terror dessa década: para a nossa sorte, temos, então, dois clássicos do terror para nos divertir.
Depois de quase um ano de sua estreia no Festival de Toronto, eis que o novo filme de Terrence Malick chega oficialmente aos cinemas estadunidenses. E chega com ares polêmicos, para variar: os que amam Malick, reforçam seu amor, e os que odeiam têm mais uma chance de atacar o diretor. E dessa vez muita gente irá com pedras nas duas mãos para jogar em Malick: To The Wonder (um título perfeito, que foi estragado ao ser traduzido por Amor Pleno no Brasil) é ainda mais "vazio" do que A Árvore da Vida (2011), contem ainda menos "história" do que o filme anterior e, pra aumentar o desespero dos que odeiam Malick, o filme se constrói praticamente todo em voice overs. É bom deixar bem claro: esse filme, embora mais simples do que A Árvore da Vida, não é para qualquer um.
A obra do Malick vem sendo cada vez mais poética, mais narrada: algo que começou timidamente em Além da Linha Vermelha (1998), cresceu em O Novo Mundo (2005), amadureceu n'A Árvore da Vida (2011) e culminou em To The Wonder. Eu arrisco - com todo o carinho do mundo que tenho por Malick - a dizer que sua obra não é sinestésica, mas, sim, cinestésica (isso mesmo, com "c de casa", no sentido biológico-medicinal, digamos). Em To The Wonder isso é desenvolvido e levado a seu extremo: a sensação de equilíbrio e a auto-percepção de que existem partes diferentes em nossos corpos, é como o Amor que Malick apregoa em seus 112 minutos de filme. É necessário haver um balanceamento, pois quando se tira de um lado, o outro sentirá falta e buscará, de alguma maneira, compensar esse desconforto. Talvez seja essa busca por equilíbrio, essa busca pelo amor que fará com que muitos não gostem do filme: tal como os seus anteriores, é necessário não assistir, mas se entregar à obra e a experimentar, pois Malick trabalha com experiências (ele sendo filósofo de formação, seria difícil pedir o contrário). Despindo-se de preconceitos e pré-conceitos com os quais somos bombardeados frequentemente pelo cinema hollywoodiano, permita-se apenas imergir em sensações. Não busque em To The Wonder 'histórias" ou coisas que façam um sentido de fácil dedução: afinal, isso não é a vida de verdade - se pararmos pra pensar, viver é algo muito simples, e nosso dia-a-dia não é um roteiro de filme. Tendo tudo isso em mente, assista à obra.
Embora o IMDB aponte nomes aos personagens principais do filme, eu não consegui identificar nenhum durante a exibição (mas isso pode ser porque só o assisti uma vez), porém, como fica mais fácil escrever aqui com nomes, os usarei. To The Wonder seria quase um triângulo amoroso entre Neil (Ben Affleck), Marina (Olga Kurylenko) e Jane (Rachel McAdams), sendo que as duas mulheres não se conhecem. Eu disse "quase" porque, para haver um triângulo amoroso, é necessário que haja o fundamental: o amor. Não é bem isso o que sente Neil. O filme começa com ele se encontrado com Marina no fantástico monastério de Mont Saint-Michel, na França, e tendo uma paixão. Eles formam um casal pela cidade de Paris, morando juntos com a filha de Marina com seu ex-marido, a Tatiana (uma garota de 10 anos). Em Paris, Marina é cheia de vida, feliz, e acostumada ao barulho e caos das grandes cidades (que, como sabemos, Malick odeia), porém, quando muda-se com a filha para a casa de Neil em Oklahoma, as coisas começam a tomar outro contorno: embora ela continue cheia de vida, dançando e pulando, aos poucos vai percebendo que essa felicidade contrasta demais com a quietude e melancolia de Neil, que está sempre calado, embora seja um homem bastante apaixonado e romântico. Com a filha não se acostumando à cultura estadunidense e com as discussões cada vez mais frequentes com namorado, Marina resolve voltar à Paris, deixando o coração de Neil livre para ter um caso com Jane, uma mulher do campo (que, como sabemos, Malick adora) que cuida de animais e teve uma filha que morreu com pouca idade. Após um tempo separados, Marina resolve voltar para os EUA e reencontra Neil. Uma nova paixão recomeça, mas há especificidades na natureza humana que faz com que dificilmente mudemos e isso afeta o casal.
Se até agora não falei da figura do Padre Quintana (Javier Bardem), mesmo ele aparecendo em muitas cenas, é porque ele é o contraponto à história de amor do casal Neil/Marina. Quintana representa o amor de Deus, aquele que é capaz de unir pessoas no matrimônio, perdoar detentos e dar paz aos doentes. Porém, Quintana sofre com sua própria fé: ele pede constantemente que Deus o faça reencontrar seu amor por Ele, que faça Seu amor penetrar no coração dos homens, que só brigam e se destroem. E é com Quintana que Malick vai, de fato, apresentar sua tese aos espectadores: o amor dos homens nunca será nada se eles não encontrarem aquele "amor que nos ama" - como diz algumas vezes Marina -, o amor divino. Neil, Marina e Jane não têm paz interior, pois conseguem mais facilmente amar uns aos outros do que a Deus. Um Deus que está, constantemente, olhando por todos: tal como em A Árvore da Vida, Malick filma todas as tomadas externas contra a luz do sol, deixando ele aparecer e nos ofuscar, por vezes. Contudo, o amor em To The Wonder é diferente daquele apresentado pela Graça no filme anterior: se em A Árvore da Vida é mostrado o amor bonito, jovial, alegre, em To The Wonder é apresentado o amor sexual, o amor triste, que machuca, e também aquela fase do amor que entorpece - e talvez por isso o filme tenha um ritmo um pouco mais lento de narração quando comparado ao anterior. Já escrevi tanto sobre A Árvore da Vida aqui nessa impressão que acredito ter deixado claro: são filmes complementares, incluindo algumas tomadas e movimentação de câmera quase idênticas ao To The Wonder. Porém, o que mais gostei foi o jogo de cores do filme: enquanto no antecessor era tudo muito brilhante e vívido, agora as cores estão desbotadas, quase um tom de sépia toma conta dos campos e, principalmente, o céu está sempre nublado: coisas que só o gênio Terrence Malick consegue trabalhar tão bem.
Para finalizar, fica aquela questão: To The Wonder é melhor do que A Árvore da Vida? Eu digo que não. Mas digo isso porque, assim como escrevi na impressão do filme na época, Malick decretou o fim do Cinema quando o dirigiu. Dificilmente, na minha opinião, alguém conseguirá fazer algo melhor, incluindo o próprio Malick. To The Wonder é um complemento de A Árvore da Vida, não um filme totalmente original (e talvez isso explique o seu rápido processo de produção, durando apenas 1 ano), então dificilmente iria se sair melhor. De qualquer modo, ter o prazer de ver uma obra do Malick é inenarrável, por mais que eu tente escrever nessas linhas. Quando fiz a lista de Melhores e Piores de 2012 e tive de apontar o filme que mais aguardava para esse ano, eu só elenquei um: To The Wonder. Até mesmo disse que ele seria o melhor filme de 2013.
(Dessa vez, uma impressão um pouco diferente, bastante fundamentada nos debates acadêmicos e que, assim como o filme, continua atual quase três anos após sua publicação no Valor Econômico. Agradeço ao Moisés Baptista e à Denise Rodrigues por liberarem seu artigo também ao CineImpressões!)
Fonte: Missão dada é missão cumprida: Artigo sobre o Filme "Tropa de Elite 2". Valor Econômico, São Paulo/SP, p. 22 - 23, 29 out. 2010.
Cremos que é possível dizer no início deste breve artigo que ficção e realidade caminham de mãos dadas nas salas dos cinemas do país.
"Tropa de Elite 2" traz à tona uma série de reflexões capazes de ser aplicadas na análise da realidade brasileira. Ao passo que o primeiro longa da série dirigido por José Padilha focou a questão do monopólio legítimo do uso da força pelo Estado, corporificado pela atuação do Bope, o novo filme assume nuances mais complexas. Se no primeiro filme de Padilha são apresentados ao espectador o universo do crime, a corrupção policial, as proximidades e os cruzamentos entre esses dois mundos, "Tropa de Elite 2" abre espaço para um debate mais complexo, voltado para a teia de relações e dos jogos de interesse presentes no sistema político e na segurança pública da Cidade Maravilhosa. Entretanto, é possível que em cada canto deste país os espectadores associem os eventos e situações à realidade dos seus bairros, municípios e Estados.
Ao acompanharmos os fatos apresentados na trama é possível percebermos a "caminhada" da corrupção, percorrendo diversos espaços institucionais, como o sistema prisional, a corporação policial, escritórios de políticos, e chegando às comunidades dos morros. No entanto, há uma indicação de que a "caminhada" tem início na arena do poder político estatal. A corrupção que antes era visualizada como uma ramificação do sistema de segurança pública (um batalhão específico do corpo policial, o "batalhão dos corruptos") agora se espraia para a instância da representação política do Estado. Séculos atrás, Thomas Hobbes atribuiu ao Estado o papel de implementar o contrato social capaz de deter em sua essência a materialização do homem como "o lobo do próprio homem". No século XXI, embora sob o formato de obra fictícia, "Tropa de Elite 2" apresenta o Estado como a mola mestra que retroalimenta as atitudes ilícitas, com fins meramente particulares, nos setores mais próximos à população, ou seja, o avesso do que foi proposto pelo filósofo inglês.
Em resposta à reivindicação apresentada pelo personagem André Matias (André Ramiro), sobre o descaso e o abandono enfrentados pelos policiais do Bope, o protagonista consagrado pelo público, Coronel Nascimento, parte para a implementação de decisões que seriam capazes de "corrigir o sistema". O Bope é reestruturado em armas, treinamento e veículos blindados. O tráfico é expulso da comunidade, impedindo que os policiais corruptos arrecadem o "arrego" de traficantes.
Antes vista como ramificação do sistema de segurança pública, a corrupção agora se espraia para a representação política do Estado
Apesar de seus esforços, Nascimento descobre que sua estratégia falhou em deter o ciclo de reprodução da corrupção e da violência urbana, especialmente contra os membros das comunidades que, agora, em troca do "cenário de paz", são obrigados a "negociar" seus bens de consumo e meios de sobrevivência com as milícias. Recomeça o ciclo, agora com mais força, sob o controle dos policiais corruptos aliados aos candidatos a cargos políticos. É possível que essa seja uma das ideias mais importantes do filme, a de que investimentos pesados na construção de presídios e na infraestrutura policial não são suficientes quando pensados de maneira isolada e imediatista. Algo que ainda não foi compreendido totalmente é a concepção de que os direitos são indivisíveis e que as políticas sociais necessitam ser pensadas em rede, não de maneira pontual.
De forma semelhante ao primeiro longa da série, Padilha direciona, na narrativa de Nascimento, provocações aos militantes "de esquerda" que defendem os direitos humanos. Contudo, nas entrelinhas, o filme demonstra aos espectadores mais atentos que o entrave entre o discurso de defesa dos direitos humanos e o Estado é fatalmente regido por jogos de interesse capazes de limitar a aproximação entre a esfera real e ideal da proteção aos direitos.
A partir desse ponto, é possível reconhecer que, de forma paradoxal, o Estado assume tanto o papel de provedor de direitos da sociedade quanto de perpetrador de violações aos direitos humanos. As circunstâncias e os objetivos em questão é que determinarão qual será o papel assumido. É aí que se encontra o ponto-chave do filme. O próprio sistema estatal assume um papel violador sobre a população, quando deveria atuar como seu protetor. E as consequências são as mesmas apresentadas pelo discurso de defesa dos direitos humanos: a dificuldade de implementação prática da democracia e da proteção aos direitos dos indivíduos. "Tropa de Elite 2" aponta para uma substituição do bem comum pela rede de interesses e favorecimentos próprios de uma parcela dos representantes do poder estatal.
Ao passo que o primeiro longa trouxe à discussão as violações e abusos contra as pessoas pertencentes aos extratos mais vulneráveis (em especial, os moradores dos morros cariocas), a continuação traz como complemento o apoio de parte da população à atuação mais enérgica por parte da polícia. Há uma identificação do público que, na realidade brasileira, clama pela atuação enérgica da polícia, pela proliferação das unidades prisionais e pela adoção de penas mais duras, com o mesmo público que na ficção torna legítima a atuação violenta e abusiva da polícia ao aclamar Nascimento como herói, por ter assumido a responsabilidade pela execução de detentos de Bangu I.
Em nossa opinião, o ponto de destaque do filme é a busca do protagonista em identificar o motivo pelo qual "o sistema", repleto de ilegalidades, é difícil de ser quebrado. Por vezes, da mesma forma, buscamos uma explicação para os escândalos que afloram das esferas de atuação dos nossos representantes políticos. É possível que a permanência desse sistema de corrupção institucionalizada esteja na herança brasileira, enraizada do mais baixo ao mais alto escalão pela defesa dos objetivos individuais, pela possibilidade de recorrer ao "jeitinho" e aos favores daqueles que pertencem às classes mais privilegiadas hierarquicamente.
Como afirma o antropólogo Roberto DaMatta, possivelmente a aplicação do "você sabe com quem está falando?", que desqualifica as regras e decretos universalizantes, foi espraiada para o universo das relações sociais cotidianas para a esfera decisória, da política em si mesma. E isso com a legitimidade popular corporificada pelo voto. Fazendo alusão ao subtítulo de "Tropa de Elite 2", talvez nosso inimigo também seja outro. Talvez sejamos inimigos de nós mesmos. E, nesse processo, a decisão popular é determinante, para o bem ou para o mal.
Ao confrontarmos realidade e ficção, reconhecemos as diversas missões delegadas à sociedade brasileira: a necessidade de aproximação entre o discurso em prol da defesa dos direitos humanos dos cidadãos e a atuação dos representantes do Estado; o imperativo de afastarmos o risco de transmutação dos anti-heróis em mocinhos, dos "Fábios" e "Russos" em exemplos; a obrigação de definirmos nossos "heróis" e representantes com base em princípios éticos e democráticos, que contribuam para a efetividade prática do bem comum e da igualdade de todos perante a lei. Quiçá, um dia, o Brasil cumpra suas inúmeras missões. Porque, afinal, "missão dada" deveria ser "missão cumprida".
Não sou profundo conhecedor da obra de René Goscinny e Albert Uderzo, que começou a ser lançada em 1959 e até o momento já conta com 34 histórias em quadrinhos. Mas se hoje, profissionalmente, sou o que sou, eu devo, sim, agradecimentos ao trabalho desses dois franceses que trouxeram ao mundo as aventuras de Asterix e Obelix. Desde criança adoro a dupla. Li algumas HQs, mas o que mais me marcou mesmo foram as animações feitas nas décadas de 1960 à 1980 baseadas nos gibis. Eu devo ter assistido a cada animação umas 15 vezes ou mais. Elas passavam sábados (ou seriam domingos?) à tarde no canal Bandeirantes e eu nunca perdia. Lembro que eu era vidrado no Obelix e o que eu mais desejava provar quando criança era javali assado e a tal da cerveja quente que eles tomaram numa das viagens. Contudo, devo confessar, não eram os gauleses que mais me chamavam a atenção: eu adorava aquele povo que sempre "perdia", aqueles legionários comandados por um sujeito chamado Júlio César e que se vestiam de vermelho, S.P.Q.R. ficava na minha cabeça, enquanto eu matutava sobre o que significaria. Enfim, eu gostava mesmo era dos romanos! Eu torcia por eles, mesmo sabendo que, obviamente, perderiam. Mas a magnificência daquele povo me encantava. Cada cena que se passava em Roma era um deleite pra mim: ficava vendo aqueles templos, o Fórum, as casinhas e... poxa, como eu gostava de ver aquilo!
O tempo passou e eu sempre me via lendo sobre os romanos e vendo programas na TV sobre arqueologia. No fim da adolescência acabei me apaixonando por Eletrônica e acabei deixando meu envolvimento com Roma de lado um pouco. Mas quando terminei o colégio técnico, vi que não era com eletrônica que gostaria de passar o resto dos meus dias: não seria um casamento feliz. Terminamos nosso relacionamento, mas sempre continuamos amigos. Eu tinha de seguir em frente e, para isso, era necessário olhar para trás. Só restava uma opção: eu queria estudar Roma, eu queria ser arqueólogo. O caminho não foi fácil e ocorreram alguns tropeços mas, no fim, realizei meu sonho. E o realizo a cada dia. Cada vez que pego um livro sobre Roma eu me vejo quando criança, parado em frente ao televisor, sem piscar, assistindo aos desenhos da dupla Asterix e Obelix. É por isso que guardo um carinho enorme por esses gauleses. E é por isso que fico feliz cada vez que anunciam um novo filme deles!
Contudo, a felicidade nem sempre acompanha a qualidade. Em 1999, foi lançado Asterix e Obelix contra César, o primeiro filme "carne e osso" da dupla, e ainda é um dos meus preferidos. Conseguindo captar o espírito das HQs, o filme não tentava ser "real", ele brincava com a quantidade de absurdos presentes nas histórias originais e, com isso, se saiu muito bem. Três anos depois, em 2002, chegou aos cinemas Asterix e Obelix: Missão Cleópatra. O filme já mudou bastante em relação ao anterior: agora tudo estava menos francês e mais hollywoodiano, com referências a vários filmes lançados na época. Embora carecendo de "espírito Asterix", o segundo filme é bastante engraçado e vale a pena assistir. Porém, em 2008 (após a estreia da boa animação Asterix e os Vikings, de 2006), o lançamento de Asterix nos Jogos Olímpicos foi uma decepção tremenda. O filme é ruim. Simples assim. Abusando de um humor infantil, tudo no filme parece fora de ritmo, desajustado. Sem conseguir arrancar risos, o filme foi um fracasso de crítica.
Em 2012, por Tutatis!, foi lançado Asterix e Obelix: a serviço de Sua Majestade. E com ele veio a redenção: é o melhor filme live-action de Asterix dos que já foram produzidos! Não é de se estranhar, porém: foi dirigido por Laurent Tirard, o competente diretor que já havia feito os excelentes As Aventuras de Molière (2007) e O Pequeno Nicolau (2009). Um dos grandes feitos do diretor foi ter escolhido um elenco bastante bom, incluindo Catherine Deneuve (como a Rainha da Britânia), Guillaume Gallienne para o papel do inglês Jolitorax, da estonteante Charlotte Le Bon (Ophélia, namorada de Jolitorax), e de Edouard Baer como Asterix (de longe, o melhor baixinho gaulês das adaptações cinematográficas). Juntos com Gérard Depardieu, o elenco segura o filme com suas interpretações interessantes e engraçadas.
Tirard também é roteirista desse novo filme do Asterix e acertou em cheio em todos os aspectos. O grande mérito de Asterix e Obelix: a serviço de Sua Majestade está em seu roteiro. A comédia pastelão do último filme cede lugar à inteligência dos diálogos e situações. Acredito que todo inglês sem humor (talvez a maioria?) vai detestar o filme e ele terá uma péssima aceitação quando (e se) estrear na Inglaterra. Asterix e Obelix: a serviço de Sua Majestade é uma grande tiração de sarro dos costumes e do povo inglês. É a visão clara de como os franceses (e o resto do mundo, por que não?) enxergam seus vizinhos britânicos e da velha rixa histórica entre França e Inglaterra (num dado momento, quando Jolitorax pergunta à Rainha se devem pedir ajuda aos gauleses para combater os invasores romanos, ela responde que prefere ser conquistada a ter de receber auxílio gaulês). Há inúmeros pormenores que surgem aqui e ali para satirizar os ingleses e que somente aqueles que conhecem um pouco da cultura britânica (como seus comportamentos na sociedade e a sua péssima comida) irão "pegar" 100% da piada.
Asterix e Obelix: a serviço de Sua Majestade é delicioso nesse sentido: é um filme inteligente que se agarra à discrição para deixar tudo engraçado. E ao invés de tentar recriar a Britânia da época da chegada romana com Júlio César (55 e 54 a.C.), Tirard optou por dar ares de século XIX à vila britânica comandada pela Rainha (Elizabeth II, claro): melhor impossível! A cada instante é possível reconhecer algo da cultura inglesa, seja nos cenários, seja nos diálogos. A Direção de Arte, nesse porno, fez um trabalho bastante interessante ao mesclar os séculos I a.C. e XIX, embora todos os efeitos visuais em computação gráfica deixem a desejar, pois não foram feitos por grandes empresas especializadas, optando-se por produção local.
Enfim, Asterix e Obelix: a serviço de Sua Majestade serve para colocar os gauleses de volta ao seu lugar nos cinemas. Moderado e inteligente, o filme acerta em cheio ao trazer a essência da obra original para as telonas. E também nos faz pensar que o javali assado na Gália é mil vezes melhor do que o da Britânia...
Em 1933, quando a economia dos EUA não ia muito bem por conta da Depressão, Walt Disney (e seu estúdio) lançou nos cinemas Os Três Porquinhos (uma das Sinfonias Ingênuas). Foi um sucesso espantoso: firmou de vez o estúdio no cenário dos desenhos animados, alavancou a venda de diversos produtos baseados na história dos porquinhos, e serviu como lema aos estadunidenses que lutavam contra a crise: “Quem tem medo do Lobo Mau?” – as pessoas cantavam nas ruas, buscando forças para enxergar o distanciamento do grande lobo da Depressão. Os Três Porquinhos, tal como os desenhos do Mickey Mouse surgidos em 1928, ficaram marcados na cultura estadunidense, e na ocidental como um todo. Foram gastos quase US$ 16 mil na produção dos porcos e houve um retorno estimado em cerca de US$ 600 mil. Os Três Porquinhos trouxeram aos irmãos Walt e Roy Disney a oportunidade que sempre desejaram: ampliar o estúdio da Hyperion, na Califórnia, contratando mais de 200 artistas para trabalharem nos curtas animados de Mickey e nas Silly Symphonies (foram 75, produzidas entre 1929 e 1939) que eram distribuídas pela United Artists.
(Three Little Pigs, 1933)
Com Os Três Porquinhos, Walt
Disney chegou a um impasse: não havia mais o que ser feito para chamar a
atenção do público para os desenhos animados. A solução para esse problema veio
após Walt assistir a uma exibição de seis desenhos animados de Mickey Mouse em
seguida num cinema da Europa: se as pessoas conseguiam ver tantos episódios em
seguida, elas conseguiriam, então, assistir a um desenho animado só, mais longo
e com fio condutor. Nasceu, assim, a necessidade de se produzir um
longa-metragem animado com qualidade nunca vista antes. Porém, a ideia surgira
alguns anos antes, já em 1928, quando um romance de Felix Salten foi lançado
nos EUA, Bambi: Uma Vida na Floresta. Após o lançamento, Sidney Franklin – um
dos diretores mais importantes da Metro-Goldwin-Mayer – procurou Walt para
propor um acordo de produção em desenho animado, mas Walt Disney hesitou,
crendo que ainda não possuía mão-de-obra qualificada o suficiente para tal
empreitada. Em 1933, Douglas Fairbanks e sua esposa Mary Pickford ofereceram
custear a produção de um filme que misturasse live action com desenho animado
sobre a história de Alice no País das Maravilhas, mas Disney não se
entusiasmou. Na verdade, apesar de muita gente procurar o estúdio oferecendo
ideias, Walt Disney já tinha em mente o que desejava fazer como longa-metragem:
Branca de Neve. A história, como Disney declarou na época, era bem conhecida
por todos e contava com os ingredientes certos para funcionar na telona: havia
uma vilã, um príncipe, um romance e sete anões excêntricos e divertidos. O
problema, porém, é que a obra original contada pelos irmãos Grimm não possuía
quase detalhamento algum (por exemplo, os anões não têm nome); as demais
versões publicadas ou encenadas até aquele momento tampouco traziam elementos
suficientes para se construir uma história longa o bastante que se sustentasse
por 90 minutos. O único meio de se levar a história da garota branca como a
neve às telas seria a criação de passagens que não constavam no original.
Grande parte da “culpa” de Branca
de Neve e os Sete Anões ser tão humanizado se deve ao próprio Walt. No inverno
de 1933, Disney reunião o grupo principal de empregados do estúdio e fez a
primeira apresentação pública do projeto: como ainda não havia nada preparado
oficialmente (arte conceitual, desenhos ou roteiros), coube a Walt o papel de
narrar a história interpretando seus personagens principais. Muitos relatos dos
empregados do estúdio convergem para o fato de Walt Disney ser um ator
brilhante, conseguindo arrancar risos e lágrimas de quem o ouvia contar uma
história. Desse modo, instantaneamente Walt cativou seus empregados,
tornando-os muito entusiasmados com a futura produção que começaria naquele
momento. A ideia inicial era de que a produção toda levasse de um ano a 18
meses. Branca de Neve e os Sete Anões, contudo, só estrearia em 21 de dezembro
de 1937...
O longo processo de realização do
filme se deve a Walt Disney. Perfeccionista, Walt ficava meses para ajeitar
todas as passagens e detalhes do longa-metragem. A primeira etapa – e a que
consumiu um tempo significativo – foi a de melhorar a história e a de escrever
o roteiro. Disney reuniu seu grupo de argumentistas – Dick Creedon, Larry
Morey, Harry Bailey – e começou a enviar-lhes diversas versões do conto de
fadas (em uma delas, a rainha morria com os sapatos em brasa de tanto dançar!).
Ao mesmo tempo em que o trabalho escrito ia sendo preparado, Walt Disney
trabalhava com o departamento de música e sonoro e reunia seus animadores para
os primeiros esboços. Todo o processo de produção era tão lento que, na
primavera de 1935, Walt Disney ainda tinha de dar nomes aos anões e
caracterizá-los: mas isso tinha uma justificativa – Disney queria que Branca de
Neve fosse a melhor animação já feita até então.
Ainda em 1935, Donald Graham (animador
fundamental na história dos estúdios Disney e quem “emprestou” seu nome ao Pato
amigo de Mickey) era o responsável por dar aulas diárias à noite para os
animadores da Disney envolvidos no novo projeto. Alternando análises de ações
com apresentações de filmes recentes e passagens quadro a quadro das animações
de Mickey e Pato Donald, Graham mostrava aos alunos que os fundamentos da
animação são os mesmos e que, se funcionasse com Mickey, funcionaria também com
Branca de Neve. A intensificação dos treinamentos ditada por Walt deixava claro
que o estúdio não colocaria a obra em produção definitiva até que todos
estivessem absolutamente preparados para a empreitada (ao mesmo tempo em que
criava um espírito obsessivo em sua equipe). O estudo da animação não se
restringia apenas aos seres humanos ou animais selvagens: muitos objetos
inanimados eram analisados a fim de se estudar a dinâmica e a física – por exemplo,
filmava-se em câmera lenta um tijolo sendo atirado contra uma janela de vidro
para se estudar o movimento das partículas no ar, ou deixava-se uma gravata ao
vento para verificar sua movimentação. Em outras palavras, a vida dos
empregados do estúdio não se limitava ao escritório (ou até mesmo às horas
diárias de trabalho) – eles respiravam animação 24 horas.
Finalmente, em novembro de 1935,
quase dois anos e meio após Walt ter feito sua primeira apresentação de Branca
de Neve ao estúdio, um cronograma foi fechado e os trabalhos, de fato,
iniciados. A programação começava com as cenas cômicas – que eram mais fáceis
de serem realizadas pela equipe acostumada com Mickey Mouse –, passava pelas
cenas assustadoras (como a de Branca de Neve perdida na Floresta), e terminava
nas cenas tristes – aquelas que causariam o verdadeiro impacto na plateia ainda
não acostumada a se emocionar com desenhos animados. Cada anão (ou pequeno
grupo de anões) foi designado a um animador diferente, mais familiarizado com o
perfil que estava no roteiro. Contudo, em 1936, faltavam animadores para fazer
o trabalho de preenchimento entre as posições-chave desenhadas pelos animadores
principais. Foi necessário contratar cerca de 300 artistas para realizarem esse
tipo de trabalho, os in-betweeners. Mais: Disney contratava artistas com pouca
experiência, pois preferia que todos fossem treinados no estúdio, para ficarem
livres de “vícios” que eventualmente podiam trazer de fora. A alta exigência de
Disney para seus empregados era recompensada com um alto salário para a época:
os animadores recebiam, em geral, entre US$ 100 e US$125 por semana (valores
altíssimos para a época da Depressão).
(Exemplo de trabalho realizado por in-betweeners. Na parte superior, o animador principal desenha as posições-chave, ou keyframe. Na parte inferior, o in-betweener se encarrega de "preencher" as lacunas entre as posições-chave)
A animação do longa começou, pra
valer, em 1936. Walt Disney “respirava” Branca de Neve e a todo momento
paralisava algo sendo feito para dar seus palpites (que sempre eram atendidos).
Segundo o biógrafo Neal Gabler em seu livro Walt Disney: o triunfo da
imaginação americana, algumas das contribuições de Walt eram conceituais, e
vale a pena reproduzir aqui um parágrafo interessante sobre isso (p. 287):
Foi Walt quem decidiu que a
floresta onde Branca de Neve escapou devia estar viva e causar apreensão:
“Seria bom para ela (Branca de Neve) ser apanhada entre arbustos que mostram
mãos grotescas, depois o vento e todas as coisas que a assustam. Mostre coisas
que façam com que ela pense que essas coisas estão vivas mas, ao mesmo tempo, a
plateia deve ter a percepção de que tudo se passa na mente de Branca de Neve...
Como os espinhos que se transformam em mãos e novamente em espinhos”. Algumas
(contribuições) eram dramáticas. Sobre a cena na qual o caçador da rainha está
pronto para matar Branca de Neve antes que sua inocência o faça envergonhar-se e
arrepender-se, Walt sugeriu que Branca de Neve se curvasse para cuidar de um
filhote de passarinho doente. “Ela está inclinada, o que dá uma boa posição
para a facada nas costas”, comentou. “Deixe a ameaça aparecer ali, quando ela
beija o passarinho, e o passarinho se recupera e voa para longe – isso cria uma
conexão para o caçador abrandar-se”. Outras eram psicológicas. Walt estava
sempre pensando não apenas no que funcionaria na tela, como também em como os
personagens deveriam sentir-se. Deve ser Zangado, Walt decidiu, quem chora
quando encontra Branca de neve em coma depois de comer a maçã envenenada,
enquanto os outros ficam apenas com os olhos umedecidos: “Faça-o amolecer
agora. Exterior duro, interior suave”.
Enquanto começavam a surgir
discussões acaloradas entre membros das diversas equipes relacionadas ao projeto
(por exemplo, roteiristas reclamavam que os animadores estavam tirando a graça das
piadas quando as animavam), veio à tona um problema ainda mais sério: o desenho
de figuras humanas que fossem mais realistas. Ao contrário dos anões, que eram
caricaturais, Branca de Neve, o príncipe, o caçador e a rainha deveriam ter os
traços mais próximos da realidade. O estúdio, acostumado com animais falantes,
sofreu para encontrar o desenho ideal para os adultos da animação e, mesmo após
meses de debates e a escolha do traçado correto, esbarrou na questão do tempo
empregado para se animar seres humanos: faltando menos de um ano para a entrega
do filme, os animadores ainda não conseguiam animar perfeitamente seus
personagens. Muitas das cenas do longa eram filmadas com pessoas interpretando
os papéis e, depois, eram vistas pelos animadores a fim de se inspirarem nas
movimentações. Porém, o que era pra ser apenas inspiração – com o prazo se
apertando – foi se tornando a fonte principal (por mais que Walt Disney detestasse
a ideia): os animadores tiveram de apelar para a rotoscopia a fim de dar vida
aos seres humanos no desenho. Nesse método – que pode ser mais entendido aqui –
utiliza-se o filme ao vivo para se pintar os quadros do desenho, copiando cada
movimento.
(Pequena explicação da rotoscopia utilizada em Pinóquio, de 1940)
Outro fator que fez com que a
produção de Branca de Neve levasse tanto tempo, foi a opção de Walt Disney por utilizar
a câmera de múltiplos planos para a filmagem. Talvez a câmera multiplano seja o
mais importante feito na animação até os dias de hoje. Inventada pelo amigo dos
tempos iniciais de estúdio, o animador Ub Iwerks (o criador estético de Mickey
Mouse), a multiplano libertou os artistas de uma limitação bastante séria: não
havia perspectiva tridimensional nos desenhos animados até então. A câmera de
multiplanos, contudo, só foi possível de ser construída porque, anos antes,
Disney já havia ajudado a introduzir uma outra revolução no mundo da animação:
a folha de acetato. Antes dos personagens principais serem pintados sobre o
acetato (que é transparente), todos os quadros da animação tinham de ser redesenhados
integralmente, ou seja, a cada folha era necessário desenhar o personagem e o
cenário, modificando todas as escalas caso fosse preciso se aproximar ou
distanciar.
(Nesse clássico de 1912, How a Mosquito Operates, feito por um dos pais da animação, Winsor McCay, fica claro como era difícil e bastante limitador ter de refazer todos os desenhos da cena a cada quadro - sendo necessários de 12 a 24 quadros para cada segundo de animação)
Com o acetato, agora apenas era
preciso desenhar os personagens, utilizando apenas um único cenário de fundo
para todas as cenas necessárias. A câmera multiplanos, utilizando as
facilidades do acetato, propunha algo além: a cena podia ser dividida em vários
elementos que, por sua vez, podiam se movimentar livremente, dando impressão de
profundidade. A multiplanos era uma construção vertical, onde a câmera ficava
fixa e nos andares restantes havia as placas de vidro móveis que recebiam os
desenhos. Desse modo, bastava sincronizar as movimentações dos vidros para dar
o efeito de zoom ou da câmera percorrendo um ambiente, por exemplo. No vídeo abaixo, o próprio Walt Disney explica o complexo processo de filmagem com a câmera de múltiplos planos.
Antes de
ser usada para filmar Branca de Neve, a câmera de múltiplos planos foi posta em
ação para a Sinfonia Ingênua denominada The Old Mill (O Velho Moinho), também
de 1937. Sem a multiplano, provavelmente Branca de Neve nunca teria saído do
papel, uma vez que a movimentação da câmera é, como podemos ver no filme, algo
imprescindível à narrativa.
(The Old Mill, 1937. Nota-se claramente os benefícios que a câmera multiplanos trouxe à animação: agora tudo ganha profundidade e é possível ousar nas movimentações)
Com tanta gente trabalhando e
levando tanto tempo para ficar pronto, Branca de Neve e os Sete Anões, que
tinha um custo inicial estimado em US$ 150 mil, acabou custando mais de US$ 1,5
milhões, e certamente teria levado o estúdio à falência se o retorno de
bilheteria não tivesse sido tão gigantesco. Mesmo correndo contra o tempo e
tendo de fazer alguns cortes de cenas, Walt Disney e sua equipe entregaram o
filme pronto para a distribuidora RKO seis dias antes do prazo final.
(Storyboard de Branca de Neve e os Sete Anões contendo a cena final da Bruxa)
No dia 21 de dezembro de 1937, no
cinema Carthay Circle em Los Angeles, com uma plateia de 1.500 lugares, Branca
de Neve e os Sete Anões finalmente estreou. Os espectadores provaram algo que
nunca haviam visto. O cinema veio abaixo. Walt Disney, depois de uma infância
sofrida e apostando tudo em seus sonhos, finalmente havia colocado seu nome de
maneira definitiva na História do Cinema.
O poster desse filme é bastante épico, ainda mais remetendo à Criação bíblica, como se o destino de alguns homens fosse ser o pioneirismo em algumas áreas. Contudo, Cimarron não se limita ao épico apenas na imagem que foi afixada nos cinemas quando lançado: o filme narra uma jornada de 40 anos, mostrando como os estadunidenses fizeram sua corrida para tomar posse das antigas terras indígenas Osage e Cherokee. Grandiosa, a obra foi dirigida por Wesley Ruggles e recebeu o prêmio de Melhor Filme no Oscar de 1931.Essa foi a primeira vez que um filme com elementos de Western recebeu tal honraria.
Acho que o grande problema do filme para quem não conhece um pouco mais da história dos EUA é o título. À primeira vista, parece ser um nome próprio, talvez do protagonista masculino principal da narrativa. Mas o filme termina e só em um momento o termo "cimarron" aparece, e é pejorativo (ao menos, foi o que entendi). Isso leva os mais curiosos a procurarem um pouco sobre esse nome e, ao fazerem isso, vão se deparar com algo que não é tão simples de se entender, tornando-se um tanto confuso: Cimarron era o nome dado aos territórios dos índios cherokee após a Guerra da Secessão e que foram ocupados, primeiramente, por vaqueiros em busca de territórios para pecuária. Porém, com o passar do tempo, começou a haver regulamentações e leis feitas por e para esses moradores, levando a uma distinção clara entre os que pertenciam à cultura estadunidense e aos que tinham tradições indígenas. Desse modo, havia, sim, uma fronteira que separava territórios de diferentes culturas, mas ela era tênue e, em 1889, o presidente Benjamim Harrison deu carta branca aos estadunidenses para invadirem as reservas indígenas e estabelecerem assentamentos nelas.
Cimarron começa justamente nesse momento. Os documentos apontam para 50.000 cidadãos estadunidenses adentrando o território de Oklahoma em 1889 em uma corrida por terras. E quando digo "corrida", quero dizer literalmente uma corrida: a primeira cena do filme é embasbacante quando levamos em consideração que tudo em 1930/1931 era feito com pessoas de verdade, figurantes, sem uso de computação gráfica - são vários minutos de carroças, cavalos e bicicletas (!) cruzando o território em desabalada carreira, com tomadas bem amplas e um ou outro contra-plongée mostrando detalhes das rodas das carroças. Logo após somos apresentados aos personagens principais e o filme começa a tomar forma: Yancey Cravat (Richard Dix) é casado com Sabra Cravat (Irene Dunne) - com quem tem o pequeno Cim - e mora em Wichita (Kansas). A família de Sabra desaprova o casamento pelo fato de Yancey ser um homem de alma livre, um aventureiro, mas esse é um dos motivos que fazem a jovem amar o marido. Participando da corrida por terras de 1889, Yancey consegue um lote na terra dos índios osange e estabelece moradia lá com sua família. Ele também é editor de jornal e em pouco tempo funda o Oklahoma Wigwam, periódico que logo alcança significante reconhecimento e faz com que Yancey torne-se uma figura pública na cidade, participando de cultos religiosos e ajudando a defender o local de grupos de bandidos. É esse espírito pioneiro e corajoso de Yancey que serve de guia para todo o resto do filme. Mostrando a virada do século como algo sempre evolutivo, a obra dirigida por Ruggles serve de propaganda para o contexto difícil que os EUA atravessavam durante a produção do filme: a Grande Depressão.
Yancey Cravat nunca se prende a um lugar, está sempre em busca de novas aventuras e parte por longos anos em busca de novos territórios para conquistar quando o governo estadunidense começa a preparar outras corridas por terras. Em seu lugar na preparação do jornal fica sua esposa Sabra, que também é um retrato da mulher que, embora nunca podendo botar freios em seu marido, torna-se empreendedora e condutora dos afazeres do esposo enquanto ele não volta: Sabra seria muito bem uma mulher independente se os padrões da época assim permitissem. Em outras palavras, Cimarron foi filmado tendo por base o famoso livro homônimo redigido por Edna Ferber em 1929 e mostra - ou tenta mostrar - para as plateias que iam ao cinema na época como é possível superar problemas que surgem ao longo dos anos: problemas políticos e econômicos. O filme (e o livro), então, seria um meio de inspirar as pessoas a vencerem a Depressão que se arrastava desde 1929.
Mesmo tendo, num momento ou outro, alguns discursos pró-indígenas por parte de Yancey Cravat, Cimarron é claramente uma obra estadunidense que se baseia na desapropriação de terras e deculturação indígenas. É errado fazer o que fizeram aos índios? Sim, como o próprio Yancey admite. Porém, ele mesmo parte em busca de novos territórios e luta contra os espanhóis para conquistar mais lugares no Oeste. No discurso jornalístico, tudo é muito bonito. Mas dificilmente Yancey ganharia uma estátua em Oklahoma se tivesse, de fato, lutado pelos direitos indígenas e, principalmente, vencido.
O filme em si é bastante agradável de se ver. Mesmo tendo envelhecido muito com o tempo e não ser mais tão atual, quando temos em mente os contextos históricos nos quais a obra se passa (afinal, ela começa em 1889 e termina em 1930!) ela se torna muito mais atraente. Vale a pena assistir mesmo não sendo um dos melhores filmes já feitos. Ainda mais por ter sido o primeiro filme a ser indicado nas 5 categorias principais do Oscar na época: Melhor Filme, Melhor Diretor, Melhor Atriz, Melhor Ator e Melhor Roteiro.
Para a alegria de todos os cinéfilos, a Universal Pictures comemorou os seus 100 anos de existência lançando em blu-ray alguns de seus maiores sucessos. As edições vêm em formato especial: numa caixinha e contanto com um livreto colorido impresso em papel-foto. Embora não tendo um preço muito razoável aqui no Brasil, vale a pena investir naqueles títulos que realmente interessarem, afinal, a restauração e a conversão para Full HD é bastante competente e agrada aos que, assim como eu, são chatos com relação à qualidade de som e imagem dos filmes. Dentre as obras lançadas, está Nada de Novo no Front, filme de 1930 e terceiro ganhador do Oscar na categoria Melhor Filme (sendo, também, a primeira obra não musical a receber tal honraria).
O contexto histórico e econômico em que o filme foi produzido é bastante interessante. Mal o mundo estava se reerguendo da Primeira Guerra Mundial, a quebra na Bolsa de Valores nos EUA (1929) veio e afundou tudo novamente. Conseguir dinheiro nessa época, então, se tornou mais difícil, e o que acabou realmente dando um sopro de vida na indústria cinematográfica estadunidense - e fazendo com que ela continuasse adiante - foi o fato de os próprios estúdios terem suas salas de cinema, onde exibiam seus lançamentos. Some a isso o contexto do Cinema em si: o reinado dos filmes mudos chegara ao fim, e havia um pouco de pessimismo com relação aos filmes falados, tanto da parte do público como, principalmente, da parte dos atores, que precisavam se adaptar ao novo formato, embora nem todos conseguissem (Buster Keaton é um exemplo clássico desse momento).
Convenhamos que o clima não era um dos mais agradáveis e a incerteza sobre o futuro pairava sobre a sociedade estadunidense. Porém, a situação era pior na Europa, principalmente na Alemanha, quebrada pela guerra e tentando se reerguer sob o parlamentarismo da República de Weimar (para esse período, recomendo a leitura da brilhante obra de Alfred Döblin, Berlin Alexanderplatz, ou assistir à homônima mini-série de 1980, dirigida por Rainer Werner Fassbinder). Contudo, em 1929, um jovem autor alemão chamado Erich Maria Remarque publicou um livro intitulado Im Westen nichts Neues (Nada de Novo no Front) que vendeu, em 18 meses, 2,5 milhões de exemplares. Esse livro talvez passasse despercebido se não fosse por uma característica marcante: é uma obra antibelicista. Um livro antibelicista escrito por um alemão em uma Alemanha na qual, embora ainda não estando no poder, já contava com uma alta influência nazista. Em outras palavras, era o grito de paz de um jovem cidadão que lutou nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial e viu seus amigos morrerem. Obviamente, esses ideais antibelicistas trouxeram problemas a Remarque e ao filme quando foi exibido na Alemanha: durante as sessões, os nazistas gritavam frases de guerra e soltavam ratos pelos cinemas e, no caso do autor, a continuação de seu livro, lançada em 1931, Der Weg zurück (The Road Back), foi proibida no país. Felizmente, porém, os direitos da primeira obra foram adquiridos pela Universal que, por sua vez, escolheu o talentosíssimo Lewis Milestone para dirigir a adaptação.
Milestone nasceu na Rússia czarista e migrou para os EUA quando ainda era adolescente. Em solo estadunidense, ingressou na indústria cinematográfica e foi galgando os degraus até assumir a função de diretor. A sua competência foi reconhecida pela primeira vez no Oscar de 1929, ganhando o prêmio de Melhor Diretor pela comédia Dois Cavaleiros Árabes, desbancando William Wellman e seu vencedor Asas. Já em 1930, Lewis Milestone abocanhou o Oscar de Melhor Diretor, e seu filme Nada de Novo no Front ganhou o de Melhor Filme: isso foi o suficiente para que Milestone estabelecesse seu merecido lugar na galeria dos grandes diretores da Sétima Arte. Talvez a obra não fosse atemporal se Milestone não a tivesse dirigido. Só nos resta agradecer à Universal Pictures por ter colocado alguém como ele na direção.
A história em si é pesada. Eu diria até mesmo melancólica. Bate uma tristeza quando o filme acaba - e da maneira como acaba. A ideia central de Nada de Novo no Front é mostrar como a guerra consegue destruir as almas humanas.O filme começa com um desfile militar numa cidade alemã, onde toda a população sai às ruas para festejar a ida dos soldados na guerra recém-declarada. A cena, em si, é belíssima: uma grande parte da "culpa" é a ausência da trilha sonora nos primeiros filmes falados, deixando, assim, que apenas os instrumentos da banda militar ressoem pela multidão. Vemos o desfile e a câmera adentra uma sala de aula de tem as janelas abertas para a rua, onde o professor de idade tem sua voz abafada pelo som que vem de fora. Quando fica um pouco mais tranquilo, acompanhamos o discurso ufanista do professor aos seus alunos, dizendo que eles devem defender a nação contra os inimigos e se orgulharem de morrer em campo. Nessa hora, então, somos apresentados a um grupo de amigos estudantes, todos jovens de 16 ou 17 anos, que são tomados pelo frenesi causado pelas palavras do professor e decidem se alistar no exército - mesmo que isso faça com que suas mães fiquem doentes de preocupação (pois elas são fracas, como diz o professor). Esse grupo de amigos é a motivação do filme: todo ele gira em torno desses jovens rapazes sonhadores que acreditam que ir à guerra é um ato de heroísmo. Dentre eles, temos Paul Bäumer (Lew Ayres), um rapaz que quer ir ao front para conquistar honras e os corações das moças, mas que se torna o grande filósofo do filme.
No começo, durante os treinamentos militares, tudo é festa e alegria, com o grupo de estudantes sorrindo mesmo tendo um sargento bastante implicante os treinando. Nessa parte do filme, Milestone leva o tempo necessário para criar os laços de amizade entre os rapazes, fazendo com que a gente crie empatia e se familiarize com seus rostos e personalidades. Porém, toda essa jovialidade começa a desaparecer quando são enviados ao front na França para lutar nas trincheiras. Os horrores da guerra vão, aos poucos, moldando (ou destruindo?) suas personalidades: já não é mais tão engraçado se fingir de soldado como nos treinamentos - agora seus companheiros correm sérios riscos, e conviver com a morte durante dias, meses ou anos em trincheiras sempre atacadas por inimigos não é algo que se esquece: a loucura vai tomando conta das pessoas, e isso fica bem claro na cena do bombardeio sobre as trincheiras, em que os amigos estão numa espécie de abrigo: dá pra ver na face de Bäumer que atingiu o seu limite - o seu sorriso doentio é a constatação máxima de que toda a sua vida anterior já não existe mais... Isso leva o garoto a questionar os motivos da guerra entre os países e o que se ganha guerreando no front. Mas são indagações que se tornam vazias durante os combates: você foi posto ali para matar ou morrer, e terá de se acostumar com isso. E Milestone foi tão feliz sobre a obra de Remarque que, nós espectadores, acompanhamos toda essa mudança na vida dos jovens estudantes: mantemos um sorriso no rosto no começo do filme, felizes com as peraltices dos rapazes, mas com o passar da história, nosso sorriso vai murchando como a grama que sempre é pisada pelas botas de couro dos soldados e, no último ato do filme, já não conseguimos mais sorrir: fomos observadores diretos do fim de muitas vidas esperançosas. Isso, porém, não é nada de novo no front...
Com cenas de batalha nas trincheiras de tirar o fôlego e uma fotografia soberba (reparem quando "espiamos" pela janela da casa os trens indo e chegando ao front destruído pelas bombas), Nada de Novo no Front é um marco na história do Cinema. O que mais nos deixa pasmos é saber que esse filme completará 83 anos de idade sem ter envelhecido praticamente nada. O discurso antibelicista é válido ainda hoje, mas com uma ressalva: o cinema estadunidense já não condena mais a guerra; ao contrário, a exalta, fazendo propaganda bélica do poderio norte-americano.
Para concluir: a última cena, a que Bäumer tenta alcançar, com a ponta dos dedos, uma borboleta que está do lado de fora da trincheira é de marejar os olhos. Lindíssima.
Um filme que precisa ser visto. E melhor ainda se for em alta definição!