Impressões Recentes

A Teoria de Tudo, 2014.



"Sou cosmólogo" - diz Stephen Hawking.
"O que é isso?" - questiona Jane.
"Um tipo de religião para ateus inteligentes" - responde Hawking, com um sorriso debochado.

Esse era o começo do relacionamento entre Stephen e Jane, e essa é a força motriz desta estupenda obra do não tão conhecido diretor James Marsh. Mais acostumado com documentários, o britânico Marsh toma o rumo correto ao não tentar explicar demasiadamente as teorias de Hawking. Se quer aprender sobre física, é melhor procurar em outro lugar: A Teoria de Tudo é sobre tudo, menos física. E justamente nesse "tudo" é que está a magia deste - para mim - perfeito filme.

2014 é um ano particularmente bom para o meu gosto: duas cinebiografias de dois dos cientistas que mais admiro no mundo chegam ao cinema - ainda não assisti ao Jogo da Imitação (2014), com Benedict Cumberbatch representando Alan Turing mas, se for tão bom quanto ao filme de Hawking (e deve ser, haja vista a indicação de ambos do Globo de Ouro 2015), tenho certeza de que irei adorar. Sobre Stephen Hawking, devo admitir que não li muita coisa e, do que li, só entendi inteiramente os seus livros infantis! Mas isso não o faz menos fascinante para mim. Embora eu discorde de alguns pontos de vista dele sobre a relação homem-máquina e o futuro da humanidade, é inegável sua contribuição ao mundo, colocando-o ao lado de nomes como Einstein e Galileu. Temos sorte em sermos contemporâneos a Stephen Hawking e, mais sorte ainda, em podermos assistir a um filme que o retrata como humano, não como um gênio, um ser superior.

A Teoria de Tudo é, de longe, o filme mais dolorido que vi esse ano. Ele machuca, e não se importa em machucar o espectador. A dor é do tipo pior possível, pois o que vemos em tela é um ser humano brilhante sendo atacado por uma doença neural que não tem misericórdia. É extremamente difícil ver Hawking lutando para sobreviver. E é muito prazeroso perceber que ele teve o apoio de uma grande mulher como Jane. O filme todo é cercado no relacionamento deles, suas alegrias e, principalmente, suas dores. A obra começa com Stephen Hawking conhecendo a garota num bar em Cambridge e logo a fascinando com suas palavras  bonitas e pensamentos afiados. Stephen está terminando seu doutorado quando recebe a notícia de que está doente, com a Síndrome de Lou Gehrig (ou Esclerose Lateral Amiotrófica), um problema neural que afeta seus movimentos, fala, respiração e que, de acordo com o médico, só lhe daria mais 2 anos de vida. Mesmo já demonstrando claros sintomas da doença, Stephen consegue seu doutorado - apesar de duras críticas - e esse momento é breve, mas lindíssimo no filme: uma mistura de pranto guardado com felicidade tímida. Enfim, já com o doutorado em mãos, o filme se distancia um pouco do ambiente acadêmico para focar a difícil vida do casal Hawking diante do avanço da síndrome. É quando o filme, de fato, agarra o espectador e não o solta mais até o seu final.

O papel de Jane Hawking (interpretado pela bela Felicity Jones) talvez seja ainda mais importante do que o do próprio Hawking nesse filme. Tal como em Uma Mente Brilhante (2001), cabe à mulher ser o lado forte da família (enfim, creio que sempre é assim). Só vemos Jane derramar, de fato, lágrimas, quase no fim da obra. Ela passa por momentos dificílimos e segura o choro: a cena em que ela e Hawking jogam croqué é uma das mais marcantes, transparecendo o misto de dor e raiva que Jane sente ao ver o homem que ama cambaleando pelo gramado, já afetado pela doença. Mais para frente, ela desabafa dizendo que está difícil suportar tudo, mas, mesmo assim, permanece ao lado de Hawking. Ele, por sua vez, ganhou um interprete magnífico na figura do excepcional Eddie Redmayne (que atuou em Os Miseráveis, 2012). Dizem que para concorrer aos prêmios mais importantes do cinema, basta interpretar alguém que sofre com alguma doença. Não sei se isso é verdade, mas acho merecida a indicação de Redmayne ao Globo de Ouro (e provavelmente ao Oscar 2015, também): deve ter sido hercúlea a tarefa em se transformar em Stephen Hawking e, ao mesmo tempo, convencer a quem assiste). Resumindo tudo: a dupla de atores é maravilhosa e o filme funciona tão bem justamente por causa deles.

Do ponto de vista técnico, A Teoria de Tudo tem cara de filme "oscarizável". Sua fotografia é discreta e as paisagens e casas da Inglaterra ajudam a pintar o quadro. A trilha sonora do islandês Johann Johansson é de uma sutileza incrível, não induzindo o espectador grosseiramente. A edição não deixa o ritmo cair em nenhum momento, e as duas horas de filme passam voando.

James Marsh conseguiu fazer, pra mim, o melhor filme de 2014. Não me recordo de nenhum filme ter me impactado tanto durante esses 12 meses. E talvez o maior mérito de um filme é fazer com que o espectador queira saber mais sobre ele quando os créditos sobem na tela. É o meu caso: vou reler o que tenho do Hawking, pois me deu uma vontade tremenda de poder entender melhor a mente desse homem que tem uma vida tão fascinante!

Alex Martire



O Hobbit: A Batalha dos Cinco Exércitos, 2014.


Lá e de volta outra vez...

Eu adoraria escrever que uma tremenda surpresa aconteceu e, milagrosamente, o terceiro filme sobre Bilbo Bolseiro foi algo espetacular que me fez rever minha vida e morder a língua por ter malhado os filmes anteriores. A vida nem sempre é justa e surpresas boas nem sempre acontecem...

O Hobbit: A Batalha dos Cinco Exércitos consegue fechar a trilogia com chave de papelão: Peter Jackson, o megalomaníaco capitalista, tortura mais uma vez seus espectadores, tratando-os como estúpidos. O que vemos em tela é um desfile de inutilidades. Um emaranhado de gritos, espadadas e milhares de personagens em CG pululando na tela. É tudo tão execrável que fica difícil lembrar de tudo (e se tornaria uma impressão muito longa se assim o fosse). Vou apontar apenas aquilo que me incomodou mais (o que incomodou menos deixarei de fora). Só há um meio possível de expressar a ruindade da obra, e ela deve ocorrer por meio de "porquês". Vamos lá.

- Por que, ó Peter Jackson, você estendeu tanto o segundo filme?! Era plenamente possível encerrar toda a pataquada que você criou em apenas dois filmes. Você fez um verdadeiro coito interrompido com a questão do dragão Smaug no segundo filme para, agora, resolver tudo em 10 minutos.

- Por que, ó Senhor dos Filmes Longos, você pensou que duas horas de uma batalha que dura poucas páginas seria tão interessante para a plateia? Necessitava tanto torrar dinheiro com computação gráfica?

- Por que, ó Magnânimo Adorador de Tolkien, você simplesmente distorceu aquilo que é principal no livro: experimentarmos a Terra-Média através dos olhos de Bilbo Bolseiro? Somente no primeiro filme é que Bilbo tem destaque. Nesse último, em especial, ele nem precisaria aparecer. Foi um desperdício incrível da competente atuação do Martin Freeman (como Bilbo, ele se saiu um excelente Dr. Watson!).

- Por que, ó Mestre das Adaptações, você corrompeu uma das obras literárias mais belas, puras e graciosas já escritas em algo épico, falhando, também, miseravelmente em criar no espectador qualquer vontade de chegar em casa e assistir ao Senhor dos Anéis? O tom sério da trilogia d'O Hobbit é de embrulhar o estômago.

Outro ponto a ser destacado é a necessidade desnecessária de transformar o rosto de Dain Pé-de-Ferro em algo feito no computador. Por quê? Simplesmente, por quê?

Se há algo de bom neste novo filme é a sua duração: as quase 3 horas dos antecessores, agora se tornaram 2 horas e uns 10 minutos de tormento. O filme não tem história alguma, ele todo é uma sucessão de batalhas e decapitações (algo que praticamente, não ocorria nos filmes 1 e 2). Cansativo. Entediante.

Espero que o deslize imenso de Peter Jackson ao levar para as telonas a história de Bilbo Bolseiro não se repita em seus próximos filmes. Espero, sinceramente, que mais nenhum estúdio dê carta branca para Peter Jackson trabalhar com filmes que necessitem (ou que ele force) de continuações.

De tudo isso, uma questão paira no ar: " E se os filmes tivessem sido dirigidos por Guillermo Del Toro?" Pois é, nunca saberemos.

E eu achando que o filme novo das Tartarugas Ninja era a pior coisa que havia visto esse ano...



Alex Martire



Esse vídeo seria bem melhor:



Ou esse!




Garota Exemplar, 2014.


Creio já ter escrito em algum lugar por aqui que David Fincher é um dos meus diretores preferidos. Ele tem um certo dom para escolher roteiros complexos e destrinchá-los de modo ímpar. Para mim, o único deslize de Fincher até hoje foi o insosso "Millenium" (2011), que simplesmente parece fugir do tom de suas obras anteriores. Não que o filme tenha sido um desastre completo, mas, tratando-se de David Fincher, eu não espero nada mais que a excelência. Felizmente, ela está de volta!

Garota Exemplar é "Fincheriano" do início ao fim. Temos tudo o que consagrou o diretor: violência, reviravoltas, diálogos afiadíssimos... é um filme de "encher os olhos". E como toda obra boa de Fincher, é extremamente difícil escrever sobre ela sem entregar a trama. Vou tentar resumir, então, em apenas poucas palavras aquilo que vemos em tela durante a projeção: Nick Dunne ( o sem-conserto Ben Affleck) tem um casamento de 5 anos conturbado com Amy Dunne (a loira-porcelana Rosamund Pike); regado a desejos não concretizados e indícios de agressões verbais e físicas, a história do casal muda drasticamente quando, nas bodas de casamento, Amy misteriosamente desaparece de casa. A vida de Nick passa por transformações profundas quando passa a ser investigado pela polícia e julgado pela mídia e pela sociedade sobre o sumiço de Amy.

Falar mais do que isso estragaria o prazer em se assistir ao filme. E que prazer! É simplesmente delicioso ver um dos mestres do suspense novamente nos entregando uma obra praticamente impecável como Garota Exemplar. Se os filmes anteriores de Fincher são bastante psicológicos,  este explora um lado que não aparece tanto nos demais: a doença sexual. O filme é sobre sexo. O filme é sobre possessão. O filme é um tanto doentio também no modo como nos faz querer saber como aquilo tudo acabará. Fincher tem tanta segurança que joga a reviravolta do filme praticamente em sua metade e muda a história completamente, dando-nos uma outra visão de tudo. É um prazer quase sexual sentir que o clímax só virá mais tarde. O modo como monta a estrutura da obra colabora incrivelmente para isso: Fincher mistura trechos do diário de Amy com a cronologia de seu desaparecimento, nos colocando ora numa espiral, ora numa linearidade.

Antes de assistir ao filme eu havia lido que as interpretações de Affleck e Pike eram dignas de prêmios. Ok, não é para tanto. E a culpa, novamente, é a de Ben Affleck. Já abri mão dele, não tem mais salvação... Neste filme ele está um pouco menos pior, mas continua sendo aquele sujeito de uma face só. Felizmente, suas falhas são compensadas pelos atores coadjuvantes (como sua irmã e a investigadora policial) e, principalmente, pela encantadora Rosamund Pike, que consegue transmitir com veracidade os problemas que o amor pode gerar. Quase sempre coadjuvante na telona, acredito que Pike irá, daqui em diante, conseguir mais papéis de destaque, uma vez que provou, de vez, ser capaz de lidar com personagens extremamente complexos.

David Fincher dirigiu mais uma obra-prima. Garota Exemplar irá deliciar quem gostou de "Zodíaco" (2007), "Seven" (1995) ou "Clube da Luta" (1999). Certamente um dos melhores filmes que assisti esse ano e um dos principais na já excelente carreira de Fincher. Mais do que obrigatório.

Alex Martire


A Memória que me contam, 2013.



Um cinema de experiências e não político?


Propus-me a  um desafio, este resume-se e concretiza-se no estudo  da trajetória e a cinematografia da cineasta Lúcia Murat, ambas atreladas, pois como a cineasta afirma em entrevistas  seus filmes sobre a Ditadura Militar têm como ponto de partida suas experiências como uma jovem de classe média com pretensões revolucionárias, com uma presa política, vítima da tortura, esta um dos principais dispositivos utilizados pelo regime autoritário. Sendo que até hoje, apesar das medidas em prol dos Direitos Humanos  e das denúncias, mantem-se como um recurso recorrente e operante.

Escrevo aqui sobre o filme mais recente de Lucia,    A Memória que me contam, lançado no ano passado, assim como Quase dois irmãos (2005) e  Uma longa viagem (2011) uma das temáticas centrais é a  das  “utopias destruídas” de uma geração que resistiu ao regime político autoritário, e que buscava não apenas acabar com ele, mas de forma mais ampla uma sociedade mais justa, mais igualitária. É assim, que Lúcia consente a Revolução para sua geração, ela não se resumia apenas em derrubar o poder dos militares, mas transformar as estruturas remanescentes da sociedade brasileira. Lúcia e muitos de sua geração sonhavam e, o melhor de tudo, lutaram por uma “sociedade ideal”.

Lúcia resiste um pouco em definir o seu cinema como sendo político, apesar da dificuldade que encontramos de dissociá-lo dessa condição, e quem sabe objetivo.  A cineasta acredita que o termo seja mais apropriado para fazer referências a um gênero, do que propriamente a seus filmes. Para ela, os seus filmes não são continuidade de sua luta, mas muito mais de sua vida. Os seus filmes têm como fundamento as suas experiências no passado, principalmente, a da resistência à ditadura, por essa razão as situações associadas à violência, à diferença e à tortura são recorrentes em suas obras. Essas são situações limites que viveu e que acha impossível fugir delas. 

“Pelo resto da minha vida eu repito nos meus filmes as mesmas coisas de maneiras diferentes.”

Apesar de possíveis repetições, os filmes de Lúcia Murat  possuem singularidades que os diferenciam uns dos outros, há uma aproximação no campo temático, o uso do lúdico,  este interligado às idas e voltas – um trânsito dissonante, revelador, às vezes doloroso da memória. No entanto, sua obra corresponde a “propostas estéticas e buscas diferentes”, mesmo que eles digam respeitos a momentos passados de sua vida. 

Em A Memória que me contam  vamos conhecendo de forma gradativa a militante Ana, por meio das falas de seus antigos “companheiros”, que tentam no período contemporâneo lidar com a condição de terem sobrevivido à perseguição, à prisão e à tortura. Como declara Lúcia Murat e uma das personagens de seu filme, há um sentimento de culpa cercando esses indivíduos devido ao fato de terem continuado vivos, enquanto outros envolvidos na mesma luta que eles não tiveram o mesmo destino.

Sendo assim, a figura de Ana, ou melhor dizendo, a lembrança que eles têm de Ana é um dos  principais elementos que os mantêm ligados ao passado de resistência e militância política. A narrativa do filme estrutura-se a partir de flashes de memórias de seus personagens, por essa razão podemos dizer que ela é fragmentada,   descontínua  e parcial. Com molduras nostálgicas e afetivas. Há a dor da perda da amiga, mas há outra dor  de um  não lugar no mundo dessa geração de presos políticos, que apesar de terem se tornando pessoas bem sucedidas, sentem-se ora injustiçados, ora culpados. 

O revelar as histórias implica em mexer em um passado doloroso, que alguns não querem trazer à tona, não diria que Ana represente essa parte dolorosa do passado desses amigos ex-militantes contra o regime militar.  Ana de certa forma representa o que de bom existiu naquela época. Se por um lado,  eles reconhecem que não foram apenas vítimas, pois também usaram da violência como meio de defesa e como forma para tornar suas lutas mais efetivas, alguns deles reconhecem que na atualidade afastados de suas pretensões revolucionárias de outrora começaram a fazer política de fato. Entre os ex-militantes, encontramos profissionais bem resolvidos e com influência significativa na sociedade, por exemplo, um ministro. 

O filme apresenta como pano de fundo  questões ligadas aos “reparos” e buscas por verdade, esta longe de ser única, no que diz respeito aos impasses de lidar com as memórias da ditadura civil-militar na sociedade brasileira. As recusas e insistências de abertura dos arquivos, um novo momento da nossa história  iniciado com a implementação das Comissões da Verdade, as quais tentam lidar com os pilares: Memória, Verdade e Justiça.

Ana mantem-se jovem e bonita na lembrança de seus companheiros. Ela, na minha leitura, representa a utopia de outrora.

“Ana nossa eterna rebelde, que nos unia e de quem precisávamos!”

 Mas ela não sobreviveu. Ana confessa à amiga: “Minha identidade se foi nessa revolução perdida (...) Estou sobrevivendo a mim mesma!”

As utopias derrotadas e os sentimentos de injustiça  e culpa que aparecem no filme não fazem dele uma obra extremamente pessimista. As revoluções diferente daquela de meados e segunda metade do século passado assumem outras especificidades e pretensões em nossa sociedade contemporânea, cabendo a cada um de nós acreditar ou não, defender ou repudiar suas possibilidades e intenções.

Uma das vias possíveis no meu ponto de vista é a arte. O jovem Eduardo afirma: “Micro revoluções , explosões de afetos, insisto persisto, levo minhas artes para as ruas, é a minha revolução!”

Por mais que Lúcia Murat seja relutante em denominar os seus filmes como políticos, e que eles expressem a sua luta, diria, assim como a própria, que reconhece que o lidar com um passado traumático e continuar criando é incrível. Para ela, é uma maneira de lidar com a culpa, para mim a de continuar envolvida numa causa revolucionária, não aquela que buscava uma sociedade ideal, mas uma que recusa um hipócrita e conveniente esquecimento, que escancara uma história, que apoia-se na memória como experiência, fundamento e legitimação, por mais que o seu trânsito às vezes seja confuso e doloroso.


Cleonice Elias da Silva    


A Ilha de Bergman, 2006.


                                  Bergman sua Ilha, sua solidão, eterna juventude e seus demônios


Este filme comprei  entre outros em  um momento de impulso consumista, mas impulsos consumistas que resultam em compras de filmes e livros são altamente recomendáveis.  Não sou uma especialista em Ingmar  Bergman, ainda estou conhecendo pouco a pouco a sua filmografia, mesmo não sendo uma especialista da  produção Bergeniana uma coisa eu afirmo, seus filmes não são recomendados para domingos à tarde, quando estamos lamentando gradativamente a chegada da segunda-feira. 

Os filmes de Bergman por falta de um adjetivo mais apropriado são de uma densidade que nos fazem ficar indo e voltando a eles, buscando as melhores interpretações, as melhores leituras, todas essas no meu ponto de vista são tentativas inconclusas. Interpretações e leituras nem sempre implicam no conhecimento  de uma determinada coisa. Diante dessa minha constatação, fiquem  à vontade em discordar, o que nos resta e  nos rendermos  a nossas experiências como espectadores,  essas muito  únicas e muito particulares. Daí entre outros aspectos a  maravilha  do cinema. Li não sei direito onde uma declaração, acho que do Andrea Tonacci, - um dos ícones do nosso Cinema Marginal – que o cinema não deve ser encarado como um retrato da realidade – e de fato ele não é.

Minimizamos seus efeitos, seus valores, seus  significados, sua essência se o consentimos dessa forma.  De fato ele é a representação de uma  dada e pretensa realidade, mas acredito veemente que ele pode em maior ou menor escala nos ajudar a “lidar”,  compreendê-la  e conviver de forma mais amena com ela. Não sei se para vocês ?  Mas  para mim o cinema não é apenas uma  válvula de escape,  é  muito mais o meu lugar   de conforto  - um porto de chegada acolhedor que  me ajuda a  encarar e ler melhor a realidade ou quem sabe as  realidades que me rodeiam.

Sendo assim , não só os filmes de Bergman como dos demais cineastas que lidam com temáticas densas, existencialismo, dramas pessoais  etc; podem nos conduzir nesse processo. Mas é claro que cabe a cada espectador  optar em encarar o cinema como apenas uma diversão, não que isso seja ruim, mas aconselho experimentá-lo   também como um meio de “crescimento pessoal”. 
A Ilha de Bergman  (2004)  foi realizado por  Marie Nyreröd   e  exibido no Festival Internacional de Cinema de São Paulo no ano de sua morte, 2007. Lançado em DVD no Brasil pela Versátil.
 Na minha leitura o ponto de partida do filme é a solidão vivida pelo cineasta que resolveu por escolha própria morar na Ilha de Färö, para ele, nela ele sente-se cercado por outra realidade. A primeira vez que esteve na ilha foi em 1960: “Senti a estranha sensação de ter chegado em casa!”

Mas no transcorrer do filme essa solidão pareceu-me amena  e a história de vida do cineasta – suas lembranças  - seu entusiasmo com o cinema e com a vida a ofuscam, mas percebi que ele a considera  necessária para sua vida.

“Às vezes eu penso  que deveria ligar para alguém, mas depois deixo pra lá. Não há nada mais maravilhoso do que a solidão. ”

Com seus 88 esbanja muita  simpatia e coerência em todas as suas declarações. Desde jovem engajou-se com a causa do cinema,  dirigindo  no total  67 filmes, muitos deles para televisão, além disso,  Ingmar Bergman  escreveu  70 roteiros . Estes, para o cineasta, surgem geralmente quando ele vê uma imagem.  A história de  Gritos e Sussurros (1972), por exemplo, surgiu a partir de uma imagem  de um quarto de castigo com mulheres.

“Tanto em Persona (1966)  como em Gritos e Sussurros a criatividade veio me socorrer em situações difíceis (...) A criatividade de Persona salvou minha vida! Já no outro a criatividade foi confortante e tranquilizante” – afirma ele.  

Em 1944, realiza seu primeiro filme Tortura do Desejo  e em  2005 seu último,  Bergmanova Sonata,  um filme para televisão.

Os lugares de memória são revistados por ele em companhia de Marie Nyeröd, a partir desses espaços  que marcaram momentos  do passado do cineasta, histórias selecionadas por ele vêm  à tona, uma vez que a memória é seletiva e influenciada  diretamente por laços afetivos ou desavenças que não deveríamos, mas trazemos conosco. E acredito que tal aspecto influi nos relatos privilegiados pelo cineasta. Bem humorado  topou a proposta da cineasta de encenar algumas situações que remeteriam às vivenciadas em momentos de seu passado.

Sobre o filme Tortura do Desejo afirma:

“Quando realizei o meu primeiro filme, só gritei e briguei  não tinha nenhuma autoconfiança!”

Para ele,  Sorrisos de uma Noite de  Amor  (1955) foi um divisor de águas para sua carreira, um grande sucesso que rendeu bastante dinheiro, exibido em Cannes.  A partir de então segundo ele: “(...) Tive a oportunidade de filmar como queria!” Levando consigo sempre que possível sua câmera de  16 mm.
No decorrer do documentário  trechos de seus filmes são  exibidos de forma aleatória. E compartilha  com a cineasta eventos ocorridos no momento das filmagens de alguns  deles.

Bergman no decorrer de sua vida casou-se várias vezes, teve 9  filhos e sempre prezou pela sua juventude:  afirma que costumava  dizer que saiu da puberdade apenas aos 58 anos. Mesmo mantendo  esse espírito jovial que sempre esteve presente na forma como Bergman lidava com as situações de sua vida,  o assunto morte aparece no documentário. Reconhece que ela é um  fantasma que ora o ronda.  Em um determinado momento de sua vida fez uma lista com seus demônios, o pior dentre eles  é o desastre (quando as coisas não saem conforme o planejado)  e o medo, afirma sentir medo de tudo. Confessa que tem um gênio terrível e que é rancoroso: “Tenho uma memória de elefante!” O nada também o apavora, quando  sua criatividade e imaginação o abandonam: “(...) as coisas se tornam totalmente silenciosas e vazias.”

Recomendo demais  esse documentário para os que já são conhecedores  da obra de Ingmar Bergman ou para aqueles que assim como eu ainda estão conhecendo aos poucos.  Pois uma coisa é obvia as experiências vivenciadas pelos artistas influem diretamente na sua produção artística. Sendo assim, talvez possamos utilizar adjetivos mais apropriados  para caracterizar , assim como,  alguns termos com a ambiciosa pretensão de  “explicar”  seus filmes.

Cleonice Elias 

A Dama do Lotação, 1978.





A  Dama do Lotação:  a sexualidade feminina e a sua busca por satisfação 

Para quem não está inteirado da história do nosso cinema brasileiro,  não que isso seja um grande lapso, ou má conduta, talvez por falta de oportunidades e  incentivos de debruçar-se um pouco mais sobre a produção cinematográfica nacional, e quem sabe a latino-americana de forma mais ampla. O filme de Neville de Almeida  A Dama do Lotação (1978)  que contou com a produção e também a participação na escrita do  roteiro  de Nelson Pereira dos Santos  é umas das maiores bilheterias alcançadas pelo cinema brasileiro,  tem como protagonista  a exuberante Sônia Braga, e a trilha sonora  de Caetano Veloso.

Há tempos assisti a esse filme, e há tempos andava com vontade de escrever sobre ele ... 

Ouvi de uma professora querida no início deste ano, ela um exemplo de intelectualidade, de personalidade forte e  de estilo (adoro os modelitos que ela usa, os acessórios, e afins),  que  na vida a passividade  nem sempre é a melhor  opção para se “viver bem”. E eu aqui com os meus reflexos chequei acho que tarde, mas ainda em tempo a “conclusão” -  que o fazer e o não fazer implicam em julgamentos, leituras, especulações da mesma maneira.  Sendo assim, quando estivermos com vontade de fazer algo, façamos! Seja lá o que for esse algo!  O que os outros vão pensar ou vão dizer não pode nos privar  de seguir aquilo que achamos  que é o melhor para cada um de nós.  Cada pessoa funciona a partir de suas próprias lógicas, tem seus valores,  seus pontos de vista, e por aí vai.  Isso não é sentir-se superior a ninguém! É ser o que você é, e pronto! Mas podemos fazer tudo isso sem prejudicar uns aos outros!

 A felicidade não é um substantivo concreto, eu sei, ele é abstrato, mas abstrações muitas vezes podem nos ajudar a segurar a onda em momentos  nos quais  as coisas estão desestruturadas. Quando as palavras e atos esperados não vêm.  Mas ultimamente, desculpem a redundância, me enchi de coragem  e estou encarando a realidade super que de frente!

Enfim, vou   parar com a minha filosofia de botequim (essa sempre mais promissora se banhada a Heineken) , como o meu egocentrismo   e   resumir a história do filme. Apresento uma leitura muito rasa destacando elementos que mais chamaram a minha atenção, não me atendo aos aspectos estéticos. 

 Solange (Sônia Braga) é uma belíssima  mulher de uma classe social  abastada  e casa-se com  Carlos (Nuno Leal Maia).  Sinceramente, antes de escrever este texto não fiz uma pesquisa sobre os trabalhos realizados até o momento a seu respeito, mas no meu ponto de vista acredito que ele seja merecedor  de análises mais bem fundamentadas, pois aqui apresento uma leitura particular (a minha leitura, e apenas).

Em suma,  Solange não consegue ter uma vida sexual normal com o seu marido, e procura reverter essa situação,  busca conselhos com a mãe, a qual eu achei sensatíssima.

 “Quem não pode se satisfazer com um homem pode se satisfazer com outro, ou com outros (...)!”

Nas conversas com seu excêntrico  analista  afirma que  ama o marido. “O meu marido é tudo para mim!”. Mas que não consegue satisfazer-se com ele.

Eu esqueci  de mencionar que o filme lida com essas questões por um víeis  que tende a ser cômico, sem apelos profundos às  reflexões sobre a conduta humana, e muito menos críticas ácidas, como as de Von Trier, mesmo sendo o filme a adaptação de um texto de Nelson Rodrigues. No entanto, ele não deixa de ser provocativo.

Provocativo porque Solange diante da vida sexual mal resolvida com o marido sai à procura de aventuras meramente sexuais, sem qualquer vínculo de afetividade. Ela, que acho que é uma heroína dos anos 70, por ser danadíssima e corajosa a esse ponto, busca  realizações  sexuais, algo impossível de conseguir  com o marido. Ele a chama de fria. Mas vamos percebendo no decorrer do filme que de fria Solange não tem nada.

Sendo assim, ela sai  à “caça” e delicia-se com suas “presas”,  sortudas essas por sinal.

Carlos ao saber das “buscas” de sua esposa fica indignado e torna-se um “defunto vivo” e ela como sempre com seu figurino impecável – só que dessa vez um pretinho básico, vela pelo marido. Mas sem, é claro, parar de continuar aproveitando-se  das limitações espaciais dos transportes coletivos.

O que mais me agradou nesse filme é a maneira como Nelson e Neville lindaram com a temática  sexo por sexo, e pronto!  E o melhor sendo a personagem uma mulher, e o melhor de tudo ainda de “família”, e não entre as garotas de programa, sendo elas de luxo ou não. Ainda sonho com o dia que  elas sejam reconhecidas como profissionais  por aqui, como já o fizeram alguns países da Europa, mas esse assunto deixo para uma outra oportunidade.

Eu sei que nem todas de nós  somos tão “danadas” (uso o  termo com uma conotação positiva), e não temos a mesma coragem e até mesmo a necessidade de Solange. Mas estamos no século XXI (não estamos?) Vamos buscar satisfação! Seja com um fiel e comparecedor parceiro, ou com quantos o nosso bel  prazer achar necessário. 


Cleonice Elias 

Que estranho chamar-se Federico, 2014.




O homenageado é Fellini os presenteados somos nós


Sabe uma dessas experiências que a gente fica rememorando? Torcendo para que a cada rememorada os detalhes não se tornem opacos,  que a nitidez não se desvaneça, pois é, o filme de Ettore Scola,  Que estranho chamar-se Federico,  é uma dessas experiências.
Pela sutileza, pelo humor na dose certa, nem constrangedor, nem antiquado e muito menos desnecessário.

 Um filme ideal para um domingo à tarde, nesse momento em que a cidade de São Paulo passa por umas “pequenas turbulências”, mas turbulências  para o bem e para o mal são que ditam as dinâmicas das grandes ou pequenas metrópoles. Mas muitas delas não podem ficar sob panos quentes. Ando passado por uma fase de otimismo, conhecendo jovens  inteligentes, generosos, e outros adjetivos que andam me enchendo de motivação. 
Continuemos por aí cada um com seus métodos e meios questionando, porque as coisas estão muito longe de estarem perdidas!

Mas voltando para  Que estranho chamar-se Federico,  que tendo a acreditar que agradou os cinéfilos de plantão, pois  Scola explora de forma muito inteligente elementos estéticos e narrativos da sétima arte,  esta nem inferior ou superior as demais.

Com esse filme Scola não presta  apenas  uma homenagem ao seu  amigo Fellini, deixa uma marca na história do Cinema, sei lá, talvez eu  esteja exagerando. Optei antes de escrever este texto não ler as críticas até então já feitas para não ficar acanhada ou até insegura ao expor as minhas  impressões sobre o filme.

A montagem privilegia imagens de arquivos, fotografias,  trechos dos filmes do Fellini e encenações, ora tendendo mais ao “naturalismo” outras ao “teatral”. A fotografia transita entre o nostálgico, mas sempre belo preto e branco,  e o colorido vibrante, que muito remente às cores de Fellini.

Scola conta a história de Fellini de uma maneira bem peculiar, o que está em jogo não é uma linearidade, por mais que  exista a tradicional figura do narrador, sabe o tal sujeito onisciente? Só que na história de Scola ele tem mais privilégios que os demais:  não precisa pagar a conta.

Então, a partir dos recursos estilísticos mencionados   vamos conhecendo as buscas de Fellini tanto na juventude quanto na maturidade, o seu trânsito não apenas pelo mundo das artes, sobretudo,  pela vida “real”.  Nos diálogos  que ficam mais bonitos devido à sonoridade do italiano deparamo-nos com frases  que  mereceriam ser tatuadas.

Acho que nessas buscas de Fellini podemos perceber muitas coisas que estão por aqui fazendo parte de nós, ou até aquelas que podem vir a fazer.

Eu recomendo a experiência.



Cleonice Elias

Mulher de Verdade, 1954.


Uma  Amélia que de Amélia não tem nada!


Este filme eu tirei do fundo do baú, em outras palavras, é um filme que tem mais de 50 anos. Não. Não é um clássico de hollywood, nem um super surrealista, super  expressionista (...).  É um filme brasileiro produzido pelos estúdios Kino em parceria com a Maristhela, sendo o realizador um sujeito de grande importância, dentre outros, para a história do nosso cinema  - Alberto Cavalcanti.

O nome da película é Mulher de Verdade (1954)  divertido e até que bem  provocativo  para época em que foi realizado. 

O filme alinha-se em determinados aspectos com  os  “filmes musicais” produzidos pelos estúdios cinematográficos da  época tanto em São Paulo, quanto no Rio, nos quais  predominavam o tom cômico, histórias  tranquilas, que não “exigiam” tanto do espectador. Devido aos ossos dos meus ofícios há quase dois anos venho estudando outra vertente do cinema, ou como diria o incrível Salles Gomes  um outro “ciclo” do cinema brasileiro, por essa razão não tenho muito  a dizer sobre essas produções no momento, apenas  que: elas não são “obras primas” marcadas por descontinuidades narrativas, estéticas provocativas, modernas e com pretensões revolucionários,  e também não são “as mais políticas” dos filmes políticos do cinema nacional, mas merecem o nosso respeito.

Lá vem eu com as minhas pedras novamente.

Que atire a primeira pedra o ser humano pretensiosamente normal ou aquele  que vive bem por ai com a suas maluquices e esquisitices  que nunca cantarolou ou ouviu alguém  cantarolando ? 
 “Amélia  não tinha a menor vaidade (...) às vezes passava fome ao meu lado, e achava bonito não ter o que comer  (...)”. E por aí vai.

Então, pois é. Amélia é o  nome da protagonista da história de Cavalcanti, uma enfermeira dedicada, espirituosa e bonita.  Vou encurtar a história porque ela é um pouco longa. Amélia devido  às circunstâncias acabou  se casando com dois homens. Sim, eu disse dois.  O filme é bem divertido em um primeiro momento Amélia consegue  cumprir bem o seu papel de esposa no subúrbio  e em um bairro nobre da cidade de São Paulo.

Achei o filme como proposta temática bem interessante porque rompe com vários paradigmas e quem sabe até tabus, mas isso tudo de forma muito tranquila e despretensiosa. Talvez ele sirva de incentivo para algumas moças de nossa contemporaneidade que queiram   ter dois amores simultâneos, já conheci casos em que as coisas até que funcionaram – nunca os recriminei. Para todas que quiserem seguir pelos caminhos duplos de Amélia divirtam-se, e aproveitem da forma que ela fez, sem culpas, remorsos e hipócritas moralismos.

Fico por aqui na torcida. Dando um grande apoio moral.


Cleonice Elias 

Orgulho e Preconceito, 2006.





Este filme não é tão recente, mas  é o tipo de filme que vale a pena assistir quantas vezes  as nossas autossuficiências femininas, masculinas ou GLS  não estiverem  nem tão mais auto nem muito menos suficientes. 

 Ainda não consegui  arrumar um tempo digno, me culpo por isso,  para ler os  romances  da Austin, mas pretendo começar  essa  empreitada que certamente será  bem bacana,  esse projeto   está na minha lista de milhares de coisas que quero fazer o mais breve possível. Numa madrugada despretensiosamente  assisti ao Clube de Leitura de Jany Austin (Robin  Swicord, 2007), filme que indiquei para uma amiga querida, o qual ela adorou, filme que chamei de “bobinho” e fui repreendida por uma outra amiga querida. Inclusive,  foi essa quem me falou de Orgulho e Preconceito (Joe Wright, 2006),  acho que talvez eu tenha conseguido   sentir algo próximo daquilo que ela me disse sentir ao assistir esse filme.

Confesso que eu  nas minhas idas as locadoras (lugares onde há  algum tempo atrás as pessoas iam para alugar filmes para assistirem em casa) 70% dos meus filmes alugados eram as comédias românticas, mas fui gradativamente deixando-os de lado, pois  mulheres modernas  e bem resolvidas são donas de si, vão para onde querem e quando  querem, na hora que querem, sem  ou com alguém. E acabei as excluindo da minha vida.  De fato Orgulho e Preconceito jamais pode ser comparado às comédias românticas  bobinhas, que querendo ou não nós mulheres mesmo modernas  e mesmo bem resolvidas não conseguimos em determinados momentos de nossas vidas  ignorá-las.

Estamos vivendo  uma época de curtidas e compartilhamentos superficiais, volumosos e sem qualquer concretude. Por isso decidi, não quando assisti ao Orgulho e Preconceito, apesar de ter me rendido pela história e ter me dado conta que não sou  tão auto e nem suficiente quanto eu pensava ser ,   dar vazão para os meus sentimentos, de preferência os bons. Espero que aqueles que o tenham  assistido ou que venham assisti-lo passem por algo parecido.

O Amor nesse filme é multifacetado, por pouco boicotado, não entrarei em detalhes vale a pena assisti-lo.  É possível que muitos  de nós reconheçamos  nuances nossas  na Elizabeth (Keira Knightley), no Darcy (Matthew Macfadyen),  na Jane (Rosamund Pike), e talvez nos demais personagens da história.


Cleonice Elias

Noé, 2014.



Vou resumir o filme em uma frase agora: O Deus cristão é um cara malvado.

Dito isso, posso esboçar algumas palavras sobre o novo filme de Darren Aronofsky que chega aos cinemas com ares épicos e polêmicos. Épicos por ser uma história bíblica. Polêmicos por ter sido dirigido por uma pessoa assumidamente ateia. Sendo eu mesmo ateu, consegui me identificar com a visão de Aronofsky na telona e, sendo eu mesmo ateu, não acredito que o diretor em momento algum ofendeu a fé cristã. Como dizem por aí: " se a carapuça serviu..."

Pois bem, vamos lá. Aronofsky é um diretor pelo qual tenho paixão profunda. Dois de seus filmes estão na minha lista de melhores filmes que já vi, sendo O Lutador (2008) um dos top 10 da minha lista de preferidos de todos os tempos (o outro filme, se alguém tiver curiosidade, é Cisne Negro, de 2010). Lembro que, ao escrever sobre o filme da bailarina (ou falar sobre ele com alguém, não me recordo agora), eu disse que esperava uma conclusão para uma trilogia: a trilogia de pessoas que venceram pela derrota (o lutador  e a bailarina vão até o fim de seus sonhos, mesmo custando vidas). Confesso que, em certos momentos, senti em Noé um personagem que faria jus ao desfecho dessa trilogia, mas em outros pensei que ele simplesmente escapou a isso. De qualquer modo, Noé é um personagem forte, que pode vir a ser lembrado dentro da filmografia de Aronofsky, mesmo pertencendo a um filme mediano quando comparado aos demais do diretor.

Noé é um homem atormentado. Sendo neto de Matusalém, ele vive numa espécie de terra "Mad Max" bíblica, onde só há desertos e carência. Quando adulto, suas alucinações (ou visões, dependendo de quem assiste ao filme) começam a mostrar o fim do mundo sob a água. Essas alucinações são um ponto forte do filme, pois não há uma separação nítida entre realidade e imaginário quando ocorrem - acredito que foi uma decisão acertada de Aronofsky. Com o passar do tempo elas se tornam mais frequentes até o dia em que ele "escuta o chamado de Deus" e começa, junto com sua família e os gigantes de pedra denominados Guardiões (da linhagem de Set, ou Abel, não lembro) a construir a Arca. O resto a gente já sabe: um casal de cada animal do mundo (menos cães, gatos e porquinhos-da-índia - que devem ter sido criados por Deus depois que percebeu a falta de animais no mundo novo), chuva, inundação que faz inveja ao rio Aricanduva, e recomeço. Isso seria um spoiler de milhares de anos, então não me preocupo em contar.

Junto a isso temos os arcos paralelos sobre os filhos de Noé: Sem quer ter filhos com Illa (Emma "Hermione" Watson), enquanto Cam se torna frustrado, pois está cansado de se masturbar e Deus não mandou Noé colocar nenhuma mulher a mais na Arca (coitado); tem o Jafé também, mas ele não é muito relevante no filme. Mas para tentar tirar leite de pedra de uma mitologia milenar que pouco conteúdo escrito tem a oferecer, Aronosfky cria a tensão na obra com a figura de Tubal-cain, um rei do povo da terra de "Mad Max" que deseja embarcar na arca para se salvar mas é barrado por Noé e coloca seu povo em batalha contra a família de Noé e os Guardiões de pedra.

Sei que muitos podem se perguntar agora: Mas isso não é ficção fantasiosa no estilo Senhor dos Anéis? Sim, é! E o mais incrível é que houve críticos nos EUA que falaram mal do filme por ele não ser fiel bastante à bíblia, por ser "fantasioso" demais...

...

...

Retomando...
Aronosfky faz críticas sutis ao cristianismo em seu filme. Ou nós poderíamos entender assim. O fato é: o diretor mostra como Deus matou todos os seres humanos até então viventes com um dilúvio. Se isso é amor, é difícil pensar o que é ódio, correto? Daren Aronosfky trabalha muitíssimo bem essa questão com a personagem de Noé e seu filho Cam: que Deus é esse que mata inocentes? Ou, se não eram inocentes, nós somos mais puros do que eles? Afinal, não somos tão ou mais pecadores por termos fechado a Arca à centenas de outras pessoas que também tinham filhos, pais, e amavam? 

Aronofsky não julga essas questões, apenas nos apresenta e isso, para mim, é um crédito tremendo! Quem for cristão, provavelmente irá dizer "Mas é isso o que está escrito na bíblia". Os ateus dirão: "Belo Deus esse que mostra amor matando a todos". Essa é a beleza de Noé: um filme que pode agradar a todos ou fazer todos odiarem. Aronofsky brinca a todo o momento com a Criação e a Evolução (especialmente na parte em que Noé narra o surgimento do mundo), sem tomar partido, respeitando a (des)crença alheia.

Com uma fotografia competentíssima e seus famosas tomadas que seguem as personagens pelas costas, Noé é um filme de Aronofsky. É nítido. Contudo, creio que seja o filme mais fraco do diretor e facilmente será esquecido. A culpa, porém, não é dele em sua execução, mas, sim, em uma história que originalmente pouco oferece de conteúdo.

No entanto, entre os filmes bíblicos que não estão relacionados à vida de Cristo, Noé é a obra mais brilhante já realizada até o momento: profundo na construção de personagens e coeso. O filme ficaria melhor se não deslizasse em seu fim, com explicações desnecessárias que ofendem a inteligência do espectador.

Se vale a pena assistir? É Aronofsky! Só por isso já vale! A única coisa que não vale é pagar a mais para ver um filme em que o 3D é totalmente dispensável...

Alex Martire


Hunger, 2008.


O corpo como alvo da opressão e como forma de resistência

Steve McQueen – cineasta inglês – não tem uma vasta produção de filmes, todavia, os três realizados até o momento tiveram uma boa recepção entre uma crítica especializada e conquistaram prêmios em festivais.  O seu  filme  mais recente, 12 Anos de Escravidão (2013), conquistou o Oscar de Melhor Filme, e continua aí rendendo algumas discussões, alguns posicionamentos  entre os críticos e entre uma parcela do público que o assistiu.

Sem mais delongas,  o tema da Escravidão no cinema norte-americano nos últimos anos vem sendo bem acolhido,  aqui não estou questionando o merecimento dos filmes que receberam indicações ao Oscar, os quais a  partir de alguma perspectiva  lidam com a problemática da  Escravidão na história dos Estados Unidos, e nem estou reafirmando as suas qualidades estéticas, e de produção de uma maneira mais ampla. Apenas menciono que são filmes importantes para o cinema contemporâneo dos Estados Unidos, provavelmente ficarão para a “história” desse. Mas não  apenas por isso eles cumprem um papel importante, entre outros aspectos, eles  representam  condições sociais, que infelizmente não se extinguiram  em um passado distante ou até mesmo recente, de algum modo algumas delas continuam acentuando as clivagens sociais, em linhas gerais, o racismo não apenas na sociedade norte-americana como em outras ainda mantém-se operante.

Sei que essa discussão rende muito “pano para manga”, e merece uma devida atenção, acho que alguns críticos de cinema – me refiro aos brasileiros – não estão negligenciando essa situação. Todavia, o objetivo desse meu texto é realizar uma  imersão  rasa, mas que de forma pretensiosa, espero que seja minimamente densa no filme Hunger (2008). Desculpem-me se algumas vezes estabeleço comparações, há a possibilidade de que para alguns elas parecem inapropriadas, mas enquanto assistia ao filme, outros filmes me vieram a mente, não consegui não lembrar    de  características e opções estilísticas de  outros cineastas.

O filme é ambientado a maior parte do tempo dentro da prisão irlandesa Maze, na qual se encontram presos os seguidores do IRA, no contexto da década de 1980.  O espaço e os personagens  nos  são apresentados de forma gradativa, os planos longos e lentos (que me remeteram imediatamente a  Abbas Kiarostami)  vão nos revelando aspectos da prisão fria e opressora. O mesmo ocorre com os personagens do filme, que não precisam dizer muita coisa, boa parte do que percebemos neles vem à tona  a partir de seus gestos, de seus olhares, de suas respirações ofegantes,  etc. Nos primeiros momentos dos filmes há uma alternância de planos mais fechados para planos mais abertos, é através dessa dinâmica que vamos conhecendo aos poucos a Maze e os sujeitos que nela encontram-se.

Inicialmente não  nos é apresentado o protagonista (Bobby Sands, interpretado por Michel Fassbender, ator que marca presença nos outros filmes de McQueen), mas sim, um dos guardas da prisão (vivido por Stuart Graham), sujeito que parece sentir-se claustrofóbico dentro desse  espaço, que não consegue interagir com seus colegas de trabalho. A cena dele encostado   no muro sob a neve, tomando ar fora da prisão, com sua mãos feridas (que o close up  faz questão de mostrar) nos revela  características desse personagem, que precipitadamente pensei que cumpriria um papel “decisivo” na trama. Diria que ele é um personagem que tem como função  evidenciar alguns dos “efeitos colaterais”  gerados por uma prisão, mesmo ele não estando trancafiado dentro de uma cela, sente-se  de alguma forma oprimido, enclausurado.

Os presos são apresentados aos poucos, praticamente não sabemos nada da vida deles antes da prisão (algo semelhante faz  Francisco J. Lombardi, com a adaptação de La Ciudad  y los Perros). Os diálogos são poucos, sem grande profundidade, a profundidade do filme manifesta-se pela ordenação dos planos cujas principais características já foram mencionadas.

Há uma beleza peculiar nesse espaço  inóspito, em uma das primeiras greves de fome um dos presos com os restos de comida “tinge” as paredes de sua cela, riscos ordenam-se  compondo pinturas que remetem a de alguns artistas expressionistas.  Um plano de uma cena externa  apresenta um  enquadramento de cima pra baixo evidenciado  as árvores cuja fotografia privilegia o tons azulados (esses muitos presentes também em Shame (2011), Sean Bobbitt é o responsável pela direção de fotografia ) na minha perspectiva é um dos mais bonitos do filme, ele aparece mais ao fim do  filme e nas   primeiras sequências  quando uma voz off   feminina desolada  nos apresenta uma leitura/discurso sobre a condição desses presos, e de forma mais generalizada do status político ( ou de sua ausência) no movimento IRA e da repressão dirigida a ele,  me arrisco a  afirmar que McQueen o consente nessa conjuntura como  esvaziado e desarticulado.

Não existe isso de assassinato político, bombardeio político ou violência política. Não nos comprometeremos com isso, não haverá status político.”

Parece-me que o que ainda se mantêm  das pretensões revolucionárias do  IRA manifestam-se  por meio das rebeliões – práticas  políticas e até mesmo buscas pela sobrevivência por parte desses presos: que se negam  a vestir “as roupas dos  criminosos”, que jogam urina no corredor da prisão, que fazem greves de fome, visando com isso conseguir algumas concessões do governo britânico.

A tensão que nas primeiras sequências do filme é insinuada pela profundidade  que  acentua-se  com a ordenação dos planos, concretiza-se. Os presos rebelam-se quebram objetos da prisão e são brutalmente punidos pelas tropas da polícia, esses “presos políticos”  nus têm seus corpos agredidos, a violência concretiza-se como é de se esperar de forma  desumana– os corpos desses sujeitos são deflorados (uso esse termo, apesar de não existir a violência sexual),  são agredidos, violados. 

Bobby Sands (Fassbender  aqui não é o sádico fazendeiro sulista, e nem um homem solitário obcecado por sexo, e sim um revolucionário que apesar do pesares mantém algumas de suas convicções políticas vivas) em mais uma tentativa de conquistar as concessões inicia uma greve de fome, que durou 66 dias. De forma inebriante Fassbender dá vida ao personagem Sands, se os outros dizem muitos como seus gestos, ele diz muito com seus olhos (muito bonitos por sinal). O seu ato político (a greve de fome) motivado por aquilo que ainda lhe resta de utopias políticas e revolucionárias, mas também por pretensões que almejam a  liberdade, acaba de forma gradativa com a saúde de seu corpo.  Ao vermos a magreza progressiva de seu corpo não há  como não lembrar  da  do corpo do protagonista do filme  O operário (Brad Anderson, 2005),  interpretado por Christian Bale.   A greve de fome de Babby Sands  é um ato político, de resistência e até quem  sabe de esperança.

A sua morte é lenta, nesse processo todo McQueen não faz usos de exageros sentimentalistas, é como se ele estivesse ali como “testemunha ocular” que possui um grande diferencial entre as demais – uma câmera nas mãos ou sobre um tripé. Parece que ele não  interfere nos desdobramentos dos fatos, apenas os registra.

Antes de Sands dar início ao seu ato  político, mais uma vez a mesma voz off  nos traz uma interessante reflexão de caráter quase conclusivo, sobre a “última tacada” dos presos de Maze:

"Direcionar a violência contra eles próprios. Como uma greve de fome até a morte, buscam trabalhar sobre uma das emoções humanas mais básicas: a compaixão. Como um meio de criar tensão e aumentar os fogos da amargura e do ressentimento.”

Para finalizar faço menção a  um  trecho de Hotel Ruanda (Terry George, 2004), quando um jornalista inglês interpretado por  Joaquim Phoenix consegue captar através de sua câmara os genocídios promovidos naquela região, todo esperançoso envia as imagens para um canal de televisão britânico. Todavia,  um de seus colegas, não lembro  exatamente os detalhes do diálogo, o diz que o máximo que essas imagens irão causar é uma compaixão momentânea , e logo os europeus seguiram com sua vidas,  e os genocídios em Ruanda, apesar da denúncia, continuaram ocorrendo.

Enfim, para que a compaixão deixe de ser apenas um sentimento passageiro, nos fazendo ficar em paz com as nossas consciências, e que engendre práticas sociais, essas necessariamente não precisam ser revolucionárias, bastam apenas serem bem intencionadas,  devemos  considerar que a humanidade é multifacetada, e que as diferenças devem ser incorporadas nas dinâmicas sociais não como problemáticas e catalizadoras de conflitos, mas como a principal essência que constitui não uma humanidade, mas sim as humanidades.

Cleonice Elias









Blue Jasmine, 2013.



Quando o que parece perfeito desmorona

Já que a Cate Blanchett  recebeu da Academia o Oscar  de Melhor  Atriz neste ano de 2014, merecido sem dúvida, mas o páreo  estava duríssimo, cabe aqui  da minha parte deixar claro, se restam dúvidas com relação a isso, que todas elas  são maravilhosas. Amy Adams por Trapaça,  Sandra Bullock pelo badaladíssimo  Gravidade, o mais premiado desse ano, ganhando sete estatuetas, a maravilhosa e bota maravilhosa nisso Meryl  Streep por Álbum de Família, que já tem a sua pequena coleção particular de estatuetas do Oscar, e Judi Dech por Philomena.

Tenho que confessar  que nesse ano cometi um crime super capital: não consegui assistir a todos  os filmes indicados para a premiação antes de sua realização. Sabe como é: os afazeres do dia dia, as obrigações de uma adulta “responsável” às vezes impedem-me de ir ao cinema todas às vezes que bate a vontade, e olha que ela bate com certa frequência, mas eu os assistirei agora no conforto do meu lar.

Mas o Blue Jasmine (2013) eu assisti, lembro exatamente o dia, e as reações que esse filme causou-me. Não sei quanto tempo durará a minha permanência no meio da crítica cinematográfica, porque dificilmente algum filme me causa grande repúdio, grandes implicâncias. Mas que fique aqui só entre nós que não morri de amores por Trapaça, de David O. Russel: o seu filme anterior  O Lado Bom da Vida (2012) agradou-me muito mais, achei que ele encontrou uma fórmula eficaz para falar de durezas usando como principal recurso as sutilizas. Mas  voltando para Blue Jasmine, pois o Trapaça não é o filme que me motivou nessa segunda-feira de carnaval estar sentada em frente ao computador ao invés de estar curando-me de um ressaca ou de dores nas solas do pé por ter sambado ou dançado frevos a noite anterior inteira.

Esse, para quem é totalmente desinformado, é um dos muitos filmes de Woody Allen. Aqui não vou entrar nas discussões que voltaram a repercutir na imprensa internacional a respeito do seu envolvimento no passado com a sua enteada e os ressentimentos remanescentes de sua ex-esposa, que decidiu mais uma vez jogar a sujeira no ventilador, acho que como mulher consigo entendê-la, mas enfim, deixo assunto morrer por aqui. 

Talvez a maioria dos que lerem esse texto (espero que pelo menos alguém além de mim o leia) tenha assistido ao referido filme, porque Woody Allen ainda continua chamando/ levando o público ao cinema.

Em síntese, Cate Blanchett  interpreta Jasmine uma socialite falida e traída pelo marido Harold (Alec Baldwin),  que sem ter para onde ir vai morar no subúrbio de São Francisco  com a sua irmã adotada Ginger, interpretada por Sally Hawkins -  muito boa atriz por sinal, que em  nenhum  momento tem o seu brilho ofuscado pelo o da Cate Blanchett. Como podemos prever,   de socialite ela não tem nada, e por sinal tem uma personalidade e posturas diferentes de sua irmã Jasmine, mas as duas têm lá suas semelhanças; a principal delas: ambas  possuem uma vida amorosa um tanto quanto que mal resolvida, Ginger também tem um ex-marido.

 No entanto, ela  apesar de não ser refinada e ter um “mau gosto” para os homens é uma mulher mais pra frente, mais “bem resolvida” que Jasmine, que sofre de uma série de problemas psíquicos, que se encontra totalmente perdida  na vida, não apenas porque deixou de ser rica e porque deixou de ter uma “família perfeita” (uso aspas porque dentre outros problemas, a relação com filho é muito problemática no final do filme ficamos sabendo por qual motivo). Jasmine  passa por um momento de completa desestabilidade interna,  não saberia afirmar se ela sempre teve esse problema adormecido  dentro dela e os acontecimentos negativos fizeram com ele viesse à tona, a impedindo de seguir adiante e ter uma vida “normal”.

Então, Jasmine é esta mulher que apesar do sofrimento, da desestabilidade, continua bonita, interessando aos homens: o seu chefe, por exemplo, sem muito sucesso tenta umas investidas. Mas pelo que me parece, Jasmine meio que deixou de “ser mulher”, talvez eu não esteja utilizando a colocação mais adequada, mas eu quero simplesmente dizer que, apesar das insistências de sua irmã, que adora sair “caçando” homens, ela parece ter desistido de ter relacionamentos amorosos, apesar de ter ensaiado um romance com o charmoso Dwight, ela parece ter desistindo de sentir o que a vida tem para oferecer, mesmo que às vezes nesse oferecimento venham coisas não muito agradáveis. Afinal de contas viver é assim, às vezes um dia é sensacional e alguns outros um porre, um dureza total, mas com bem dizem os franceses  C’est la vie!

E é essa vida que Jasmine não consegue encarar, a não ser com sua coleção  de medicamentos psiquiátricos (os seus coquetéis)  confesso que mantenho uma grande resistência a eles, mas também reconheço que em determinados casos e para determinadas pessoas eles são necessários e podem ajudar muitas delas a voltarem a viver de forma mais saudável, de terem uma “normalidade” retomada em suas vidas. 

Woody Allen ao escrever e dirigir esse filme recusa a linearidade narrativa, nos primeiros minutos do filme conhecemos Jasmine já divorciada, e no seu decorrer  nos é revelado como era a sua relação com o marido, como ela desfrutava de sua luxuosa vida, há uma contraposição do que ela tinha desfrutado enquanto rica e o que no momento presente ela tem que “suportar” e  adequar-se. 

Tratando-se de gênero esse filme é categorizando como uma comédia dramática, eu particularmente em alguns momentos não me dou bem com categorias, por achar que elas às vezes não dão conta de expressar o que uma certa coisa ou certo evento significam ou significaram. Blue Jasmine, na minha leitura não se trata de um filme de superação, mas muito mais de enfrentamentos, de idas e recuos. Ela não consegue  desapegar-se de um passado, ela tem muito a dizer, mas não tem quem a escute. Acho que muitas de nós mulheres, até as que não são socialites falidas, temos algo de  Jasmine em nós, mas que diferente dela consigamos seguir adiante seja a base de “coquetéis”  ou simplesmente com a cara e a coragem enfrentando  o que a vida tiver que nos oferecer.



Cleonice Elias





La Ciudad y los Perros, 1985.



O filme La Ciudad y los Perros a ausência e presença da cidade


 As impressões que apresento aqui  sobre o filme  La Ciudad y los Perros (Francisco J. Lombardi, 1985), adaptação da obra literária de Mario Vargas Llosa  publicada em 1963,  foram apresentadas na mesa de encerramento do Ciclo Mario Vargas Losa: A arte de narrar organizado pelo  Movimento Cineclubista do Memorial da América Latina, o evento ocorreu no dia 26 de outubro de 2013.

Não sou apenas uma pesquisadora do Cinema  Latino-Americano, mas sua uma defensora, nutro perspectivas otimistas com relação a ele,  às vezes até utópicas.  Todavia, não deixo de  considerar pertinentes as declarações de Paulo Paranaguá na apresentação de seu livro  Cinema na América Latina – Longe de Deus e Perto de Hollywood, na qual  autor  afirma que a maioria dos filmes realizados na América Latina desapareceram, e que um  crítico deve torna-se “historiador e este, arqueólogo”. Não nos deparamos com  dificuldades apenas ao “recompor o quebra-cabeça”, mas principalmente, ao tentarmos “decifrá-los".

Diante dessa dificuldade de se escrever e falar sobre a história do Cinema Latino- Americano,   não situarei o filme em questão dentro de uma conjuntura de produção do cinema peruano, e muito menos do Cinema Latino-Americano de forma mais ampla, o que implicaria de fato em uma abordagem muito genérica, a qual deixaria muitos aspectos importantes da cinematografia peruana e das cinematografias latino-americanas passarem desapercebidos, desconsiderar as particularidades  e conjunturas específicas desses cinemas seria uma grande negligência.

Em linhas gerais, uma produção de filmes mais significativa no Peru começa a ser notada a partir da década de 1990, isso devido principalmente aos fomentos estatais.  Na história do cinema peruano não é possível notar movimentos cinematográficos coesos, nos quais um grupo de determinados cineastas compartilham das mesmas orientações teóricas e estéticas ao realizarem os seus filmes.

De fato, há algumas produções na contemporaneidade interessadas em discutir a cultura peruana , a que mais conseguiu manter muitos de seus elementos pré-colonização, dentre as demais da América Latina, por exemplo, o Quechua e o Amará têm o status de língua oficial no país, juntamente com o espanhol.

No Peru praticamente não foram produzidos filmes sobre a história política do país, situação que pode ser explicada devido ao fato de o governo peruano ser o principal fomentador da produção de filmes, limitando assim o campo temático e as pretensões críticas de alguns cineastas.

Há afirmações isoladas de que talvez  Pataleão e as Visitadoras (2000), também de Francisco J. Lombardi e uma adaptação de um romance de Vargas Llosa,  tenha sido o filme peruano que  alcançou  o maior número de espectadores.

Uma característica marcante no cinema peruano são as adaptações literárias, dentre os autores que mais tiveram suas obras “transpostas” para linguagem cinematográfica, estão Mario Vargas Llosa e Jaime Bayly. Francisco J.  Lombardi é considerado como o cineasta que mais realizou adaptações literárias no cinema peruano, também é o que mais produziu filmes no decorrer de sua carreira.

Um dos trabalhos mais bem recebidos na atualidade por uma crítica internacional é o da cineasta Cláudia  Llosa, sobrinha de Mario Vargas Llosa, sendo a aculturação uma das principais temáticas abordada em seus filmes. Com o seu segundo filme O leite da Amargura (A Teta Assustada) conquistou o Urso de Ouro em 2009 e uma indicação ao Oscar de melhor filme estrangeiro, reconhecimento inédito para o cinema peruano. Um outro filme de Cláudia Llosa é Madeinusa (2006). A cineasta dá prioridade para as personagens indígenas, a atriz Magaly Solier protagonizou dois filmes seus, além disso, alguns diálogos e a trilha sonora são em Quechua. 

Como ocorre na maioria das adaptações literárias para o cinema, muitos elementos do texto acabam não sendo “respeitados”, ou melhor,  acabam não sendo reproduzidos na linguagem cinematográfica. A leitura de um texto está atrelada a um processo do imaginário, esse influenciado diretamente pelas subjetividades do leitor, por essa razão uma mesma obra literária pode ser adaptada de diferentes formas (a partir de diferentes perspectivas) para o cinema. Outros fatores, além das subjetividades e impressões do diretor e roteirista influem nos recortes escolhidos, e na ênfase dada a um determinado assunto/situação  em detrimento de outro/outra.

A narrativa de Llosa é complexa, fato que em um primeiro momento pode dificultar a sua transposição para a narrativa fílmica. Em suma,  há um predomínio no filme de planos mais fechados, os planos panorâmicos são poucos (destaque para o treinamento dos cadetes no deserto e para a cena final, na qual o travelling desloca-se da fachada do Colégio Militar Leoncio Prado apresentando ao espectador o espaço a sua volta, congelando na costa marítima, o Colégio fica de frente para o mar). A trilha sonora cumpre um papel mínimo na narrativa: as únicas músicas tocadas no filme são o  hino do exército peruano  e um bolero quando Fernandez visita o prostíbulo.

A partir de um flashback de Alberto Fernandez “o herói” da narrativa conseguimos intuir o porquê da palavra  perros ser um elemento constituinte do título da novela e mantido na versão cinematográfica.  Em uma espécie de trote ou “ritual de iniciação” alguns cadetes são obrigados a fingir que são cachorros. Uma frase ecoa na lembrança de Fernandez “Es un  perro o un ser humano ?”. Contraditoriamente, um espaço cujo objetivo é disciplinar, na verdade comporta ações violentas e de selvageria.

Apesar de não termos informações anteriores conseguimos pré-estabelecer que Jaguar (loiro de olhos claros, quase um galã) é o manda chuva do pedaço e o tímido Ricardo - o capacho -, o cadete que é constantemente humilhado pelos demais. Já Fernandez (O Poeta)  é o personagem que vamos conhecendo melhor no decorrer da narrativa. Lombardi não é fiel ao romance de Llosa, não nos apresenta elementos referentes aos cadetes fora do Colégio, ou seja, a cidade, a qual está  muito presente no romance. Lombardi dá ênfase para o enclausuramento, o qual intensifica a tensão entre as relações que são estabelecidas dentro do espaço fechado que corresponde ao Colégio Militar.

Fernandez não se enquadra plenamente nos moldes de um herói (aos moldes de Clarck Kent, por exemplo), pois tem algumas condutas morais que podem ser vistas como  “transgressoras” (“rouba” a Tereza do cadete Ricardo, escreve novelas pornográficas, cola durante o exame, trai  Tereza com uma prostituta, enfim). Mas talvez seja esse um dos pontos marcantes nessa obra de Llosa, os personagens são dúbios, não expressam sentimentos plenamente bons ou ruins, através de um típico maniqueísmo do melodrama. Outro exemplo, é a indiferença de Tereza e dos demais cadetes do Colégio com a morte de Aranas (cadete Ricardo). Apesar de não ter seguido à risca a novela de Llosa, Lombardi consegue dá ênfase a uma crítica intensa  às relações configuradas entre os muros do Colégio Militar Leoncio Prado,  as quais de uma forma mais amena ou gritante manifestam-se na “lógica” e na “dinâmica” da cidade narrada por Llosa.

A crítica de Llosa, dentre outras,  centra na disciplina tão necessária na vida militar, a qual rege o Colégio, todavia, percebemos que essa disciplina é constantemente burlada (vendas de cigarro, revistas de mulheres nuas, consumos de bebidas alcoólicas, entre outros). O circulo constitui um novo regimento dentro do regimento institucionalizado pelo Colégio, no primeiro momento, ambos coexistem. Sendo a figura do Tenente (Gamboa),  a expressão máxima do cumprimento da disciplina institucionalizada e aclamada pelo exército. A cena dentro da sala de aula demonstra “a supremacia” da disciplina militar, os alunos não respeitam o professor que não  se posiciona diante deles da  mesma forma autoritária e rígida do tenente Gamboa, o qual é muito respeitado pelos cadetes.Uma situação que exemplifica esse respeito, é quando  Fernandez o procura para denunciar o assassinato de Ricardo, e no final do filme o mesmo faz Jaguar.

Forçando um pouco a barra diria que é possível traçar um paralelo com o “romance de formação”, pois alguns personagens passam por modificações no decorrer da narrativa, não que elas necessariamente sejam “boas”. Por exemplo, Jaguar ao final do filme confessa a autoria do crime, mas continua defendendo o mesmo discurso,  o qual por sua vez é muito próximo do difundido e institucionalizado pelo exército. “Eu ensinei todos eles a serem homens!”.  Este trecho encontra-se na página 144 da versão online do romance, momento em Jaguar confessa a Gamboa a autoria do crime (a morte do cadete Ricardo). E o “herói” Fernandez acaba  tomando o posto que anteriormente era de Jaguar.

Enfim, a leitura apresenta por mim do filme foi plana, priorizei alguns aspectos que em um primeiro momento me chamaram mais atenção. Gostaria apenas de pontuar que em algumas instituições de nossa contemporaneidade a disciplina permanece “altiva” como discurso e como prática, ambos cercados por contradições e tensões.

Espero de forma otimista que mais olhares “polifônicos” (vindos de diferentes áreas de conhecimento e de diferentes cantos desse mundo) se direcionem para as singularidades da produção cultural latino-americana. E que o nosso hibridismo cultural continue dinâmico e criativo! O importante não é ter uma resposta para pergunta: “O que é ser latino-americano?” e sim, simplesmente, sentir-se “latino-americano”!


Cleonice Elias



 
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