Impressões Recentes

Hunger, 2008.


O corpo como alvo da opressão e como forma de resistência

Steve McQueen – cineasta inglês – não tem uma vasta produção de filmes, todavia, os três realizados até o momento tiveram uma boa recepção entre uma crítica especializada e conquistaram prêmios em festivais.  O seu  filme  mais recente, 12 Anos de Escravidão (2013), conquistou o Oscar de Melhor Filme, e continua aí rendendo algumas discussões, alguns posicionamentos  entre os críticos e entre uma parcela do público que o assistiu.

Sem mais delongas,  o tema da Escravidão no cinema norte-americano nos últimos anos vem sendo bem acolhido,  aqui não estou questionando o merecimento dos filmes que receberam indicações ao Oscar, os quais a  partir de alguma perspectiva  lidam com a problemática da  Escravidão na história dos Estados Unidos, e nem estou reafirmando as suas qualidades estéticas, e de produção de uma maneira mais ampla. Apenas menciono que são filmes importantes para o cinema contemporâneo dos Estados Unidos, provavelmente ficarão para a “história” desse. Mas não  apenas por isso eles cumprem um papel importante, entre outros aspectos, eles  representam  condições sociais, que infelizmente não se extinguiram  em um passado distante ou até mesmo recente, de algum modo algumas delas continuam acentuando as clivagens sociais, em linhas gerais, o racismo não apenas na sociedade norte-americana como em outras ainda mantém-se operante.

Sei que essa discussão rende muito “pano para manga”, e merece uma devida atenção, acho que alguns críticos de cinema – me refiro aos brasileiros – não estão negligenciando essa situação. Todavia, o objetivo desse meu texto é realizar uma  imersão  rasa, mas que de forma pretensiosa, espero que seja minimamente densa no filme Hunger (2008). Desculpem-me se algumas vezes estabeleço comparações, há a possibilidade de que para alguns elas parecem inapropriadas, mas enquanto assistia ao filme, outros filmes me vieram a mente, não consegui não lembrar    de  características e opções estilísticas de  outros cineastas.

O filme é ambientado a maior parte do tempo dentro da prisão irlandesa Maze, na qual se encontram presos os seguidores do IRA, no contexto da década de 1980.  O espaço e os personagens  nos  são apresentados de forma gradativa, os planos longos e lentos (que me remeteram imediatamente a  Abbas Kiarostami)  vão nos revelando aspectos da prisão fria e opressora. O mesmo ocorre com os personagens do filme, que não precisam dizer muita coisa, boa parte do que percebemos neles vem à tona  a partir de seus gestos, de seus olhares, de suas respirações ofegantes,  etc. Nos primeiros momentos dos filmes há uma alternância de planos mais fechados para planos mais abertos, é através dessa dinâmica que vamos conhecendo aos poucos a Maze e os sujeitos que nela encontram-se.

Inicialmente não  nos é apresentado o protagonista (Bobby Sands, interpretado por Michel Fassbender, ator que marca presença nos outros filmes de McQueen), mas sim, um dos guardas da prisão (vivido por Stuart Graham), sujeito que parece sentir-se claustrofóbico dentro desse  espaço, que não consegue interagir com seus colegas de trabalho. A cena dele encostado   no muro sob a neve, tomando ar fora da prisão, com sua mãos feridas (que o close up  faz questão de mostrar) nos revela  características desse personagem, que precipitadamente pensei que cumpriria um papel “decisivo” na trama. Diria que ele é um personagem que tem como função  evidenciar alguns dos “efeitos colaterais”  gerados por uma prisão, mesmo ele não estando trancafiado dentro de uma cela, sente-se  de alguma forma oprimido, enclausurado.

Os presos são apresentados aos poucos, praticamente não sabemos nada da vida deles antes da prisão (algo semelhante faz  Francisco J. Lombardi, com a adaptação de La Ciudad  y los Perros). Os diálogos são poucos, sem grande profundidade, a profundidade do filme manifesta-se pela ordenação dos planos cujas principais características já foram mencionadas.

Há uma beleza peculiar nesse espaço  inóspito, em uma das primeiras greves de fome um dos presos com os restos de comida “tinge” as paredes de sua cela, riscos ordenam-se  compondo pinturas que remetem a de alguns artistas expressionistas.  Um plano de uma cena externa  apresenta um  enquadramento de cima pra baixo evidenciado  as árvores cuja fotografia privilegia o tons azulados (esses muitos presentes também em Shame (2011), Sean Bobbitt é o responsável pela direção de fotografia ) na minha perspectiva é um dos mais bonitos do filme, ele aparece mais ao fim do  filme e nas   primeiras sequências  quando uma voz off   feminina desolada  nos apresenta uma leitura/discurso sobre a condição desses presos, e de forma mais generalizada do status político ( ou de sua ausência) no movimento IRA e da repressão dirigida a ele,  me arrisco a  afirmar que McQueen o consente nessa conjuntura como  esvaziado e desarticulado.

Não existe isso de assassinato político, bombardeio político ou violência política. Não nos comprometeremos com isso, não haverá status político.”

Parece-me que o que ainda se mantêm  das pretensões revolucionárias do  IRA manifestam-se  por meio das rebeliões – práticas  políticas e até mesmo buscas pela sobrevivência por parte desses presos: que se negam  a vestir “as roupas dos  criminosos”, que jogam urina no corredor da prisão, que fazem greves de fome, visando com isso conseguir algumas concessões do governo britânico.

A tensão que nas primeiras sequências do filme é insinuada pela profundidade  que  acentua-se  com a ordenação dos planos, concretiza-se. Os presos rebelam-se quebram objetos da prisão e são brutalmente punidos pelas tropas da polícia, esses “presos políticos”  nus têm seus corpos agredidos, a violência concretiza-se como é de se esperar de forma  desumana– os corpos desses sujeitos são deflorados (uso esse termo, apesar de não existir a violência sexual),  são agredidos, violados. 

Bobby Sands (Fassbender  aqui não é o sádico fazendeiro sulista, e nem um homem solitário obcecado por sexo, e sim um revolucionário que apesar do pesares mantém algumas de suas convicções políticas vivas) em mais uma tentativa de conquistar as concessões inicia uma greve de fome, que durou 66 dias. De forma inebriante Fassbender dá vida ao personagem Sands, se os outros dizem muitos como seus gestos, ele diz muito com seus olhos (muito bonitos por sinal). O seu ato político (a greve de fome) motivado por aquilo que ainda lhe resta de utopias políticas e revolucionárias, mas também por pretensões que almejam a  liberdade, acaba de forma gradativa com a saúde de seu corpo.  Ao vermos a magreza progressiva de seu corpo não há  como não lembrar  da  do corpo do protagonista do filme  O operário (Brad Anderson, 2005),  interpretado por Christian Bale.   A greve de fome de Babby Sands  é um ato político, de resistência e até quem  sabe de esperança.

A sua morte é lenta, nesse processo todo McQueen não faz usos de exageros sentimentalistas, é como se ele estivesse ali como “testemunha ocular” que possui um grande diferencial entre as demais – uma câmera nas mãos ou sobre um tripé. Parece que ele não  interfere nos desdobramentos dos fatos, apenas os registra.

Antes de Sands dar início ao seu ato  político, mais uma vez a mesma voz off  nos traz uma interessante reflexão de caráter quase conclusivo, sobre a “última tacada” dos presos de Maze:

"Direcionar a violência contra eles próprios. Como uma greve de fome até a morte, buscam trabalhar sobre uma das emoções humanas mais básicas: a compaixão. Como um meio de criar tensão e aumentar os fogos da amargura e do ressentimento.”

Para finalizar faço menção a  um  trecho de Hotel Ruanda (Terry George, 2004), quando um jornalista inglês interpretado por  Joaquim Phoenix consegue captar através de sua câmara os genocídios promovidos naquela região, todo esperançoso envia as imagens para um canal de televisão britânico. Todavia,  um de seus colegas, não lembro  exatamente os detalhes do diálogo, o diz que o máximo que essas imagens irão causar é uma compaixão momentânea , e logo os europeus seguiram com sua vidas,  e os genocídios em Ruanda, apesar da denúncia, continuaram ocorrendo.

Enfim, para que a compaixão deixe de ser apenas um sentimento passageiro, nos fazendo ficar em paz com as nossas consciências, e que engendre práticas sociais, essas necessariamente não precisam ser revolucionárias, bastam apenas serem bem intencionadas,  devemos  considerar que a humanidade é multifacetada, e que as diferenças devem ser incorporadas nas dinâmicas sociais não como problemáticas e catalizadoras de conflitos, mas como a principal essência que constitui não uma humanidade, mas sim as humanidades.

Cleonice Elias









Blue Jasmine, 2013.



Quando o que parece perfeito desmorona

Já que a Cate Blanchett  recebeu da Academia o Oscar  de Melhor  Atriz neste ano de 2014, merecido sem dúvida, mas o páreo  estava duríssimo, cabe aqui  da minha parte deixar claro, se restam dúvidas com relação a isso, que todas elas  são maravilhosas. Amy Adams por Trapaça,  Sandra Bullock pelo badaladíssimo  Gravidade, o mais premiado desse ano, ganhando sete estatuetas, a maravilhosa e bota maravilhosa nisso Meryl  Streep por Álbum de Família, que já tem a sua pequena coleção particular de estatuetas do Oscar, e Judi Dech por Philomena.

Tenho que confessar  que nesse ano cometi um crime super capital: não consegui assistir a todos  os filmes indicados para a premiação antes de sua realização. Sabe como é: os afazeres do dia dia, as obrigações de uma adulta “responsável” às vezes impedem-me de ir ao cinema todas às vezes que bate a vontade, e olha que ela bate com certa frequência, mas eu os assistirei agora no conforto do meu lar.

Mas o Blue Jasmine (2013) eu assisti, lembro exatamente o dia, e as reações que esse filme causou-me. Não sei quanto tempo durará a minha permanência no meio da crítica cinematográfica, porque dificilmente algum filme me causa grande repúdio, grandes implicâncias. Mas que fique aqui só entre nós que não morri de amores por Trapaça, de David O. Russel: o seu filme anterior  O Lado Bom da Vida (2012) agradou-me muito mais, achei que ele encontrou uma fórmula eficaz para falar de durezas usando como principal recurso as sutilizas. Mas  voltando para Blue Jasmine, pois o Trapaça não é o filme que me motivou nessa segunda-feira de carnaval estar sentada em frente ao computador ao invés de estar curando-me de um ressaca ou de dores nas solas do pé por ter sambado ou dançado frevos a noite anterior inteira.

Esse, para quem é totalmente desinformado, é um dos muitos filmes de Woody Allen. Aqui não vou entrar nas discussões que voltaram a repercutir na imprensa internacional a respeito do seu envolvimento no passado com a sua enteada e os ressentimentos remanescentes de sua ex-esposa, que decidiu mais uma vez jogar a sujeira no ventilador, acho que como mulher consigo entendê-la, mas enfim, deixo assunto morrer por aqui. 

Talvez a maioria dos que lerem esse texto (espero que pelo menos alguém além de mim o leia) tenha assistido ao referido filme, porque Woody Allen ainda continua chamando/ levando o público ao cinema.

Em síntese, Cate Blanchett  interpreta Jasmine uma socialite falida e traída pelo marido Harold (Alec Baldwin),  que sem ter para onde ir vai morar no subúrbio de São Francisco  com a sua irmã adotada Ginger, interpretada por Sally Hawkins -  muito boa atriz por sinal, que em  nenhum  momento tem o seu brilho ofuscado pelo o da Cate Blanchett. Como podemos prever,   de socialite ela não tem nada, e por sinal tem uma personalidade e posturas diferentes de sua irmã Jasmine, mas as duas têm lá suas semelhanças; a principal delas: ambas  possuem uma vida amorosa um tanto quanto que mal resolvida, Ginger também tem um ex-marido.

 No entanto, ela  apesar de não ser refinada e ter um “mau gosto” para os homens é uma mulher mais pra frente, mais “bem resolvida” que Jasmine, que sofre de uma série de problemas psíquicos, que se encontra totalmente perdida  na vida, não apenas porque deixou de ser rica e porque deixou de ter uma “família perfeita” (uso aspas porque dentre outros problemas, a relação com filho é muito problemática no final do filme ficamos sabendo por qual motivo). Jasmine  passa por um momento de completa desestabilidade interna,  não saberia afirmar se ela sempre teve esse problema adormecido  dentro dela e os acontecimentos negativos fizeram com ele viesse à tona, a impedindo de seguir adiante e ter uma vida “normal”.

Então, Jasmine é esta mulher que apesar do sofrimento, da desestabilidade, continua bonita, interessando aos homens: o seu chefe, por exemplo, sem muito sucesso tenta umas investidas. Mas pelo que me parece, Jasmine meio que deixou de “ser mulher”, talvez eu não esteja utilizando a colocação mais adequada, mas eu quero simplesmente dizer que, apesar das insistências de sua irmã, que adora sair “caçando” homens, ela parece ter desistido de ter relacionamentos amorosos, apesar de ter ensaiado um romance com o charmoso Dwight, ela parece ter desistindo de sentir o que a vida tem para oferecer, mesmo que às vezes nesse oferecimento venham coisas não muito agradáveis. Afinal de contas viver é assim, às vezes um dia é sensacional e alguns outros um porre, um dureza total, mas com bem dizem os franceses  C’est la vie!

E é essa vida que Jasmine não consegue encarar, a não ser com sua coleção  de medicamentos psiquiátricos (os seus coquetéis)  confesso que mantenho uma grande resistência a eles, mas também reconheço que em determinados casos e para determinadas pessoas eles são necessários e podem ajudar muitas delas a voltarem a viver de forma mais saudável, de terem uma “normalidade” retomada em suas vidas. 

Woody Allen ao escrever e dirigir esse filme recusa a linearidade narrativa, nos primeiros minutos do filme conhecemos Jasmine já divorciada, e no seu decorrer  nos é revelado como era a sua relação com o marido, como ela desfrutava de sua luxuosa vida, há uma contraposição do que ela tinha desfrutado enquanto rica e o que no momento presente ela tem que “suportar” e  adequar-se. 

Tratando-se de gênero esse filme é categorizando como uma comédia dramática, eu particularmente em alguns momentos não me dou bem com categorias, por achar que elas às vezes não dão conta de expressar o que uma certa coisa ou certo evento significam ou significaram. Blue Jasmine, na minha leitura não se trata de um filme de superação, mas muito mais de enfrentamentos, de idas e recuos. Ela não consegue  desapegar-se de um passado, ela tem muito a dizer, mas não tem quem a escute. Acho que muitas de nós mulheres, até as que não são socialites falidas, temos algo de  Jasmine em nós, mas que diferente dela consigamos seguir adiante seja a base de “coquetéis”  ou simplesmente com a cara e a coragem enfrentando  o que a vida tiver que nos oferecer.



Cleonice Elias





La Ciudad y los Perros, 1985.



O filme La Ciudad y los Perros a ausência e presença da cidade


 As impressões que apresento aqui  sobre o filme  La Ciudad y los Perros (Francisco J. Lombardi, 1985), adaptação da obra literária de Mario Vargas Llosa  publicada em 1963,  foram apresentadas na mesa de encerramento do Ciclo Mario Vargas Losa: A arte de narrar organizado pelo  Movimento Cineclubista do Memorial da América Latina, o evento ocorreu no dia 26 de outubro de 2013.

Não sou apenas uma pesquisadora do Cinema  Latino-Americano, mas sua uma defensora, nutro perspectivas otimistas com relação a ele,  às vezes até utópicas.  Todavia, não deixo de  considerar pertinentes as declarações de Paulo Paranaguá na apresentação de seu livro  Cinema na América Latina – Longe de Deus e Perto de Hollywood, na qual  autor  afirma que a maioria dos filmes realizados na América Latina desapareceram, e que um  crítico deve torna-se “historiador e este, arqueólogo”. Não nos deparamos com  dificuldades apenas ao “recompor o quebra-cabeça”, mas principalmente, ao tentarmos “decifrá-los".

Diante dessa dificuldade de se escrever e falar sobre a história do Cinema Latino- Americano,   não situarei o filme em questão dentro de uma conjuntura de produção do cinema peruano, e muito menos do Cinema Latino-Americano de forma mais ampla, o que implicaria de fato em uma abordagem muito genérica, a qual deixaria muitos aspectos importantes da cinematografia peruana e das cinematografias latino-americanas passarem desapercebidos, desconsiderar as particularidades  e conjunturas específicas desses cinemas seria uma grande negligência.

Em linhas gerais, uma produção de filmes mais significativa no Peru começa a ser notada a partir da década de 1990, isso devido principalmente aos fomentos estatais.  Na história do cinema peruano não é possível notar movimentos cinematográficos coesos, nos quais um grupo de determinados cineastas compartilham das mesmas orientações teóricas e estéticas ao realizarem os seus filmes.

De fato, há algumas produções na contemporaneidade interessadas em discutir a cultura peruana , a que mais conseguiu manter muitos de seus elementos pré-colonização, dentre as demais da América Latina, por exemplo, o Quechua e o Amará têm o status de língua oficial no país, juntamente com o espanhol.

No Peru praticamente não foram produzidos filmes sobre a história política do país, situação que pode ser explicada devido ao fato de o governo peruano ser o principal fomentador da produção de filmes, limitando assim o campo temático e as pretensões críticas de alguns cineastas.

Há afirmações isoladas de que talvez  Pataleão e as Visitadoras (2000), também de Francisco J. Lombardi e uma adaptação de um romance de Vargas Llosa,  tenha sido o filme peruano que  alcançou  o maior número de espectadores.

Uma característica marcante no cinema peruano são as adaptações literárias, dentre os autores que mais tiveram suas obras “transpostas” para linguagem cinematográfica, estão Mario Vargas Llosa e Jaime Bayly. Francisco J.  Lombardi é considerado como o cineasta que mais realizou adaptações literárias no cinema peruano, também é o que mais produziu filmes no decorrer de sua carreira.

Um dos trabalhos mais bem recebidos na atualidade por uma crítica internacional é o da cineasta Cláudia  Llosa, sobrinha de Mario Vargas Llosa, sendo a aculturação uma das principais temáticas abordada em seus filmes. Com o seu segundo filme O leite da Amargura (A Teta Assustada) conquistou o Urso de Ouro em 2009 e uma indicação ao Oscar de melhor filme estrangeiro, reconhecimento inédito para o cinema peruano. Um outro filme de Cláudia Llosa é Madeinusa (2006). A cineasta dá prioridade para as personagens indígenas, a atriz Magaly Solier protagonizou dois filmes seus, além disso, alguns diálogos e a trilha sonora são em Quechua. 

Como ocorre na maioria das adaptações literárias para o cinema, muitos elementos do texto acabam não sendo “respeitados”, ou melhor,  acabam não sendo reproduzidos na linguagem cinematográfica. A leitura de um texto está atrelada a um processo do imaginário, esse influenciado diretamente pelas subjetividades do leitor, por essa razão uma mesma obra literária pode ser adaptada de diferentes formas (a partir de diferentes perspectivas) para o cinema. Outros fatores, além das subjetividades e impressões do diretor e roteirista influem nos recortes escolhidos, e na ênfase dada a um determinado assunto/situação  em detrimento de outro/outra.

A narrativa de Llosa é complexa, fato que em um primeiro momento pode dificultar a sua transposição para a narrativa fílmica. Em suma,  há um predomínio no filme de planos mais fechados, os planos panorâmicos são poucos (destaque para o treinamento dos cadetes no deserto e para a cena final, na qual o travelling desloca-se da fachada do Colégio Militar Leoncio Prado apresentando ao espectador o espaço a sua volta, congelando na costa marítima, o Colégio fica de frente para o mar). A trilha sonora cumpre um papel mínimo na narrativa: as únicas músicas tocadas no filme são o  hino do exército peruano  e um bolero quando Fernandez visita o prostíbulo.

A partir de um flashback de Alberto Fernandez “o herói” da narrativa conseguimos intuir o porquê da palavra  perros ser um elemento constituinte do título da novela e mantido na versão cinematográfica.  Em uma espécie de trote ou “ritual de iniciação” alguns cadetes são obrigados a fingir que são cachorros. Uma frase ecoa na lembrança de Fernandez “Es un  perro o un ser humano ?”. Contraditoriamente, um espaço cujo objetivo é disciplinar, na verdade comporta ações violentas e de selvageria.

Apesar de não termos informações anteriores conseguimos pré-estabelecer que Jaguar (loiro de olhos claros, quase um galã) é o manda chuva do pedaço e o tímido Ricardo - o capacho -, o cadete que é constantemente humilhado pelos demais. Já Fernandez (O Poeta)  é o personagem que vamos conhecendo melhor no decorrer da narrativa. Lombardi não é fiel ao romance de Llosa, não nos apresenta elementos referentes aos cadetes fora do Colégio, ou seja, a cidade, a qual está  muito presente no romance. Lombardi dá ênfase para o enclausuramento, o qual intensifica a tensão entre as relações que são estabelecidas dentro do espaço fechado que corresponde ao Colégio Militar.

Fernandez não se enquadra plenamente nos moldes de um herói (aos moldes de Clarck Kent, por exemplo), pois tem algumas condutas morais que podem ser vistas como  “transgressoras” (“rouba” a Tereza do cadete Ricardo, escreve novelas pornográficas, cola durante o exame, trai  Tereza com uma prostituta, enfim). Mas talvez seja esse um dos pontos marcantes nessa obra de Llosa, os personagens são dúbios, não expressam sentimentos plenamente bons ou ruins, através de um típico maniqueísmo do melodrama. Outro exemplo, é a indiferença de Tereza e dos demais cadetes do Colégio com a morte de Aranas (cadete Ricardo). Apesar de não ter seguido à risca a novela de Llosa, Lombardi consegue dá ênfase a uma crítica intensa  às relações configuradas entre os muros do Colégio Militar Leoncio Prado,  as quais de uma forma mais amena ou gritante manifestam-se na “lógica” e na “dinâmica” da cidade narrada por Llosa.

A crítica de Llosa, dentre outras,  centra na disciplina tão necessária na vida militar, a qual rege o Colégio, todavia, percebemos que essa disciplina é constantemente burlada (vendas de cigarro, revistas de mulheres nuas, consumos de bebidas alcoólicas, entre outros). O circulo constitui um novo regimento dentro do regimento institucionalizado pelo Colégio, no primeiro momento, ambos coexistem. Sendo a figura do Tenente (Gamboa),  a expressão máxima do cumprimento da disciplina institucionalizada e aclamada pelo exército. A cena dentro da sala de aula demonstra “a supremacia” da disciplina militar, os alunos não respeitam o professor que não  se posiciona diante deles da  mesma forma autoritária e rígida do tenente Gamboa, o qual é muito respeitado pelos cadetes.Uma situação que exemplifica esse respeito, é quando  Fernandez o procura para denunciar o assassinato de Ricardo, e no final do filme o mesmo faz Jaguar.

Forçando um pouco a barra diria que é possível traçar um paralelo com o “romance de formação”, pois alguns personagens passam por modificações no decorrer da narrativa, não que elas necessariamente sejam “boas”. Por exemplo, Jaguar ao final do filme confessa a autoria do crime, mas continua defendendo o mesmo discurso,  o qual por sua vez é muito próximo do difundido e institucionalizado pelo exército. “Eu ensinei todos eles a serem homens!”.  Este trecho encontra-se na página 144 da versão online do romance, momento em Jaguar confessa a Gamboa a autoria do crime (a morte do cadete Ricardo). E o “herói” Fernandez acaba  tomando o posto que anteriormente era de Jaguar.

Enfim, a leitura apresenta por mim do filme foi plana, priorizei alguns aspectos que em um primeiro momento me chamaram mais atenção. Gostaria apenas de pontuar que em algumas instituições de nossa contemporaneidade a disciplina permanece “altiva” como discurso e como prática, ambos cercados por contradições e tensões.

Espero de forma otimista que mais olhares “polifônicos” (vindos de diferentes áreas de conhecimento e de diferentes cantos desse mundo) se direcionem para as singularidades da produção cultural latino-americana. E que o nosso hibridismo cultural continue dinâmico e criativo! O importante não é ter uma resposta para pergunta: “O que é ser latino-americano?” e sim, simplesmente, sentir-se “latino-americano”!


Cleonice Elias



 
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