Se a Dinamarca é um país marcado pelo inverno rigoroso, não podemos acusar o seu povo de ser frio. Como A Caça mostra, os dinamarqueses também têm o sangue bem quente quando se trata de questões delicadas. O novo filme de Thomas Vinterberg (o último foi o excelente Submarino, de 2010) é perfeito ao explorar a tensão existente que se origina em uma mentira e alcança níveis altíssimos, como está escrito no poster. Mas eu seria injusto se dissesse que o filme só é bom ao explorar essa temática de forma competente: A Caça é uma das obras mais completas que já tive prazer em assistir, aliando drama e tensão de maneira ímpar.
Mads Mikkelsen é Lucas, um professor de Jardim de Infância que realmente gosta do que faz. Divorciado e lutando pela guarda de seu filho Marcus, Lucas divide seus dias entre o trabalho com as crianças e o encontro com os amigos, sendo Theo (Thomas Bo Larsen) o seu mais antigo e querido amigo. Theo, que é casado com Agnes, tem uma filha pequena, a Klara: menina que sofre com transtorno obsessivo-compulsivo. Tudo está tranquilo até o dia em que o irmão mais velho de Klara chega em casa com um amigo olhando fotos pornográficas na internet; os garotos chamam Klara e mostram as fotos à ela. Sofrendo com as discussões constantes entre Theo e Agnes, Klara encontra em Lucas uma figura querida, protetora, por quem desenvolve um carinho que vai um pouco além do normal. Certo dia, enquanto estava tendo aulas no jardim de infância, a menina dá um beijo na boca de Lucas. O professor a repreende e Klara não gosta nada disso: antes de sair da escola, no fim do dia, a menina diz à diretora que odeia Lucas; ao ter o motivo indagado, Klara fala que Lucas havia mostrado seu pênis a ela (como ela havia, anteriormente, visto nas fotos do irmão). A partir daí, o filme mostra como a vida de alguém consegue ser destruída por conta de uma mentira: Lucas, apesar das tentativas de explicação, é demitido da escola e, pior, se vê sendo julgado por toda a pequena comunidade de onde mora, sofrendo agressões morais, verbais e físicas, incluindo a de seu velho amigo Theo, que não acredita na inocência de Lucas perante sua filha. O que já era ruim, piora com a chegada de Marcus, a quem o preconceito da sociedade também é transferido. Lucas chega a ser preso para averiguações e, depois das investigações, é solto por falta de provas: pelo olhar da lei, Marcus foi absolvido. Contudo, a sociedade não aceita tal "veredicto" e continua a julgar Lucas (e seu filho Marcus, por extensão), depredando sua casa e o espancando publicamente. Na noite de Natal, Theo vai conversar com Klara em seu quarto, onde a menina afirma que tudo não havia passado de uma mentira. Repleto de arrependimento, Theo procura Lucas para conversar. O filme, então, dá um salto de um ano, e chega a outubro, quando Marcus, enfim, alcança a idade necessária para ter uma licença de caça. Todos estão bem e sorridentes, Lucas está de volta ao seio da sociedade, e então os homens saem para caçar na floresta. Porém, algumas marcas do passado nunca se apagam...
De forma brilhante, Vinterberg vai desenrolar essa trama em 2 horas de filme. A questão que fica no ar o tempo todo é: afinal, Lucas cometeu abuso sexual ou não com a pequena Klara? Pelo recorte do filme, fica claro que Lucas é inocente: não vemos nada de anormal em sua atitude. Porém, observando suas expressões e atitudes, podemos reparar que Lucas não fica tão abalado no começo das acusações: seu rosto não demonstra isso ou Lucas é um homem realmente forte, ou será que ele tem, sim, alguma culpa? Não dá para saber, resta ao espectador desconfiar ou não do homem. O filme, contudo, de maneira espetacularmente imparcial, vai partir do pressuposto de que Lucas é inocente e nos mostrar como o julgamento precipitado pode ser cruel e danoso a uma pessoa. Se pararmos pra pensar, podemos dizer "Ah, a população está sendo injusta contra Lucas, atacando-o, até mesmo fisicamente, dessa maneira", mas, olhando pelo outro lado - e se colocando na pele dos pais - quem teria sangue frio para aturar uma situação dessas, quem não gostaria de fazer justiça com as próprias mãos? Sendo Lucas inocente perante a Justiça, é justificado que ele seja espancado dentro de um mercado pelos funcionários? Não é esse o papel da Justiça, afinal: julgar a inocência ou a culpa de alguém e aplicar a sentença (ao invés da população o fazer)? A verdade é que esse caso simplesmente mina a vida de Lucas: ele se torna uma sombra do que foi. E isso vai ser mostrado muito bem na excelente cena da Missa de Natal, onde Lucas adentra a Igreja repleta de "inimigos" e agride Theo, forçando-o a olhar bem dentro de seus olhos e gritando "Você consegue ver alguma coisa?!"; inocência e/ou vida, já não há mais nada dentro desse homem.
Magistralmente, Vinterberg vai mostrar o porquê de o cinema escandinavo não ser como o hollywoodiano no ato final de seu filme. Na cena da igreja tinha tudo para virar uma redenção, uma choradeira sem fim, com aquele final típico de todos se abraçando e admitindo seus erros, mas não é isso o que acontece: lidando com uma história humana, acima de tudo, Vinterberg joga o desfecho para a caça no fim do filme, mostrando que, apesar das aparências e das superfícies dos homens, há manchas internas que não se apagam, e que continuam a nos fazer julgar uns aos outros, mesmo que já tenhamos "desculpado" quem nos fez alguma coisa de grave. Brilhante.
Com certeza, A Caça faz o espectador sair com um leve sorriso no rosto. Um sorriso meio trêmulo, é verdade, pois se há alguma alegria em tudo o que se passou nas 2 horas, é a da satisfação de ter visto um maravilhoso filme. No mais, é uma obra pesada ao extremo, conduzida de forma a "martelar" na cabeça das pessoas por dias e, talvez, até mesmo para sempre. Dificilmente quem assiste à A Caça vai esquecer do filme. Vinterberg fez um dos melhores filmes de 2012, e será injusto se, ao menos, não concorrer ao Oscar estrangeiro em 2013. Agora é contar os meses para que ele lance, novamente, mais uma obra-prima nos cinemas!
Alex Martire
Alex Martire