O Moinho e a Cruz, 2011.


E lá vou eu falar sobre a coisa que mais me fascina (e faz com que meus amigos durmam): a paisagem.

Não poderia ser diferente, é impossível não entrar no tema "paisagem" quando falamos de Pieter Bruegel, pintor holandês (ou flamengo, se preferir) do século XVI que praticamente centrou todo o seu trabalho na retratação do amplo, do diversificado, do heterogêneo. Bruegel está tão intimamente ligado às paisagens que, durante a defesa de meu Mestrado há 1 semana, um dos professores da banca (Adílson Avansi de Abreu, DG da FFLCH) apontou para algo que eu desconhecia até então: o início do discurso sobre paisagem na Geografia se deu graças aos trabalhos do holandês. Isso, por si só, já me encheu de entusiasmo para estudar com mais carinho as obras de Bruegel, e podem imaginar qual foi a minha surpresa quando me deparei com esse filme dias atrás!

Dirigido pelo polonês Lech Majewski e tendo em seu elenco dois atores de peso, tais como Rutger Hauer (Bruegel) e Charlotte Rampling (Virgem Maria), "O Moinho e a Cruz" é um espetáculo, um tesão visual. Majewski utiliza a mesma técnica que o saudoso e romântico Eric Rohmer usou em seu "A Inglesa e o Duque", de 2001: colocar as pinturas originais para dar o pano de fundo das cenas, criando aquela caracterização estática e vibrante em seus mais diversos tons. As pessoas então, literalmente, caminham dentro dos quadros de Bruegel. No começo é estranho, dá um certo desconforto por ser algo tão nitidamente "forjado", e talvez até cause arrepios aos que esbravejam contra o Pós-Modernismo: o filme é uma constante metalinguagem - é Bruegel que observa sua própria pintura enquanto ela se desenvolve, são os personagens do quadro atuando em cena, gesticulando, falando. Enfim, é um processo de criação que está diante de nossos olhos. Genial.

O quadro em questão é "A Procissão para o Calvário", de 1564.


Como um estudioso da Arte retratada, Majewski vai desmembrar a pintura e analisar cada segmento, dando sua explicação para o todo que vemos em cena. Temos, pois, o holismo de Bruegel se fazendo presente. Embora o termo tenha sido cunhado no século XX pelo Arthur Koestler, ele se aplica a Bruegel uma vez que, do mesmo modo, é aplicável à paisagem. Por "holístico" temos em mente algo que é completo em si mesmo; a palavra deriva de "hólon" que, em grego, significa uma parte (holos) que, relacionada às outras partes, forma um todo (o sufixo on de hólon caracteriza a noção de totalidade). Por outro lado, temos na Holanda Renascentista a ampliação da noção de paisagem posta em pinturas: o termo "paisagem" surge na Alemanha (sim, eu sei que não havia Alemanha ainda mas, para melhor entendimento, chamemos assim) do século XII sob a denominação Landschaft. E o cerne do termo reside em land, que carrega consigo a ideia de terra cultivada pelo homem. Bingo! Todas as pinturas (ou quase todas) de Bruegel têm homens trabalhando a terra de algum modo, ou modificando o ambiente ao seu redor (com casas, estradas, utensílios etc.). Assim caímos na interessante palavra proposta pelo antropólogo Tim Ingold no fim do século passado, a taskscape, ou seja, a paisagem-trabalho. A paisagem-trabalho é a dinamicidade, é o cotidiano, é o ir e vir, o trabalhar em conjunto (ou sozinho, mas que acaba, por fim, fazendo parte de algo maior dentro da sociedade), é o escutar, o sorrir, o amar e o chorar - em outras palavras, é a atuação do homem sobre a natureza, convivendo com ela em simbiose (ou mutualismo, se preferirem), sem um grau de hierarquia, havendo apenas reciprocidade. 

E o fruto dessa paisagem-trabalho é aquilo que nos chegou retratado por Buegel, a paisagem em si. Temos diante de nossos olhos uma tela pintada que é um instantâneo de algo que, um dia, foi dinâmico, é a "marca" no Tempo. E essa paisagem não necessariamente tem de vir de uma paisagem-trabalho que foi observada diretamente: ela pode ser uma criação, claro, mas sempre estará presa aos conhecimentos prévios - e sempre em construção - dos seres humanos - afinal, Bruegel pinta uma cena bíblica; e mais: uma cena bíblica ambientada no seu presente, no seu cotidiano (algo muito comum no Renascimento, como sabemos): temos os soldados espanhóis fazendo o papel de carrascos romanos de Jesus (e a Espanha foi um grande problema para os flamengos no século XVI), temos camponeses e as mulheres que choram a dor de Cristo (entre elas, Maria, sentada, em destaque no canto inferior direito) com roupas do Quinze, portando objetos da época em que o quadro foi pintado. É quase possível ouvirmos o falatório da cena, escutarmos os carros de transporte, as lamentações, o vento que move o moinho... apesar de ser uma paisagem, Bruegel tem o dom de nos fazer - quase instantaneamente - visualizar a paisagem-trabalho

E esse é o grande mérito de Lech Majewski: ele faz o sentido inverso da pintura: nos apresenta personagens vivos, atuantes, humanos, e como eles se relacionam entre si e com o mundo ao redor antes de serem imortalizados estaticamente no quadro de Bruegel.

Um filme brilhante, em todos os sentidos.

Alex Martire


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