Pietà, 2012.



Pietà foi o grande vencedor do Festival de Veneza de 2012, abocanhando o Leão de Ouro. Ele dividiu muito a crítica, tendo gente que saiu da sala no meio de projeção vaiando e sendo aplaudido de pé por quem ficou. Muitos ficaram revoltados quando saiu o resultado do prêmio, dizendo que o filme não merecia tal honra. Pois bem, assistindo ao filme, eu seria um daqueles que aplaudiria, mas não sei se mereceu ganhar o prêmio, pois não assisti aos demais. De qualquer modo, é uma obra muito boa, no melhor estilo coreano.

E quando digo "estilo coreano", refiro-me ao modo com que tratam a vida: muito crua, muito real, sem  muitos enfeites poéticos. Quando são filmes dramáticos, são belos e levam um tempo a mais para serem contados - talvez até tempo demais -, mas não se tornam chatos. Quando são filmes policiais ou de vingança, aí a coisa se torna mais específica: não é todo mundo que tem estômago pra assistir a filmes assim, vide a trilogia da vingança (Mr. Vingança, Oldboy e Lady Vingança) filmada por Chan-wook Park de 2002 à 2005. Pietà se enquadra nesse segundo caso: é um filme que choca pela violência, mas praticamente sem mostrar a carnificina - é uma violência quase toda social. 

O 18º filme de Ki-duk Kim é uma ode contra o capitalismo: poderíamos também assisti-la desse modo. Embora não fique claro no filme, provavelmente toda a ação ocorre em Seul, em uma de suas regiões mais pobres, formada por uma espécie de "cortiços de refugo", onde todos vivem a partir de serviços metalúrgicos oferecidos em suas pequenas lojinhas espalhadas por vielas lotadas de escombros e lixos: cenário que me lembrou muito aquele construído por Shin'ya Tsukamoto para o seu filme cyberpunk Tetsuo, de 1987. Nessa "cidade à parte", somos apresentados a Lee Kang-do, um homem de 30 anos solitário, que trabalha como cobrador de dívidas oriundas de empréstimos. Mas não é uma cobrança normal, dessas que a gente recebe por telefone: Kang-do vai até o local de trabalho do devedor para cobrar-lhe uma dívida que chega a ser até 10 vezes mais alta do que o empréstimo; vivendo numa região miserável, as pessoas não têm como quitar seus débitos; desse modo, Kang-do arruma um outro jeito de conseguir o dinheiro das pessoas, usando seus seguros contra acidentes e invalidez: para tanto, Kang-do causa um "acidente" à pessoa que deve, tornando-a aleijada. Tudo muito objetivo, pois Kang-do é um homem bem centrado. Ele atua em nome de um chefão agiota que, por sua vez, nunca pediu que o homem fizesse esse tipo de mal às pessoas. Kang-do, numa leitura  mais extremista, seria a representação do ideal máximo do capitalismo: conseguir o dinheiro a qualquer custo. Creio que fazer esse tipo de leitura torne o filme mais atraente, embora nada impeça o espectador de simplesmente ver Kang-do como um homem sem alma, frio e violento. Fica à vontade do freguês escolher o que pensar. O que importa aqui é o fato de Kang-do sempre conseguir cobrar sua dívida, não importando as consequências e, principalmente, sem pensar nelas.

Mas tudo (quase) muda quando entra em cena a figura de uma mulher, que aparece num certo dia dizendo a Kang-do que é sua mãe que o abandonou 30 anos atrás. E é aí que o filme ganha mais peso, se torna mais interessante e tenta fazer jus ao seu título. As pietà surgiram na Baixa Idade Média, sendo imagens que mostram a Virgem Maria segurando Jesus em seu colo após a crucificação. Talvez a mais famosa seja a escultura feita por Michelangelo em 1499, que está na Basílica de São Pedro, em Roma. Não entendo nada de religião (e não faço questão de entender), mas acredito que a Pietà (piedade) não seja bem um símbolo de redenção, como Ki-duk Kim quer nos mostrar. Ao menos, vendo a escultura não me parece que Maria está segurando seu filho que só fez coisas erradas (numa visão bíblica), mas se redimiu: ela apenas está segurando seu filho morto (assim eu vejo). Acredito que seja essa a causa de tanta polêmica em torno do filme: Ki-duk Kim quis mostrar que o assassino Kang-do também é santo, ou quis mostrar que Jesus foi um grande pecador?  De qualquer modo, há uma mudança significativa na vida do cobrador quando sua suposta mãe aparece. No começo ele a nega, mas aos poucos a sua solidão vai sendo preenchida pela figura maternal, a tal ponto de ele dizer que não sabe como viveria mais sem sua mãe. A mulher passa a viver na casa de Kang-do e não se importa com o fato de ele ser um assassino, mas ele decide se "aposentar" da profissão e se dedicar mais à vida com sua mãe. Tudo vai bem até que, um dia, o filho filosofa sobre o que é o dinheiro e o que ele traz: sua mãe responde: "Ele pode trazer a vingança". Kang-do nunca havia pensado nisso ou, se tivesse pensado, talvez nunca se importasse, pois era solitário. mas agora ele tem uma mãe e sofre com o medo de ver algum dos aleijados se vingando nela. 

O filme, então, entra em seu ato final e fica interessantíssimo. A opção de Ki-duk Kim para o desfecho não é original, mas é muito bem construída e chega mesmo a enganar o espectador (não vou dizer o que é para não estragar o prazer de quem ainda não assistiu). É muito legal ver Kang-do revisitando seu passado ao investigar aqueles que um dia foram "cobrados" por ele. Kang-do se dá conta de que destruiu a vida dessas pessoas, deixando-as ainda mais miseráveis. A vingança, então, se apresenta de modo muito pragmático, fazendo-nos pensar até que ponto é necessário ter coragem para nos vingarmos. Finalmente, Kang-do encontra um sentido em sua vida e, talvez na visão que Ki-duk Kim quis passar, se redime. Ele é o Cristo que foi crucificado pelo grande Mal do Capitalismo? Ele é a vítima da história? Talvez sim. Talvez não. Ki-duk Kim deixa que você reflita sobre o que deseja interpretar. 

E esse é um grande mérito para qualquer filme.

Alex Martire



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