"Parece que você também não pensou em mim. Acabei de saber que você se casou. Meu plano era ver seu rosto, me vingar do Hindley e depois me matar. Mas mudei de ideia. Nunca abandonarei você. Nunca mais. Minha vida foi amarga desde a última vez que ouvi sua voz. Continuei vivendo só por sua causa."
Heathcliff
Ano passado foi produzida mais uma adaptação do livro de Emily Brontë (que usava o pseudônimo masculino Ellis Bell), publicado pela primeira vez em 1847, quando "Jane Eyre" ainda caía no gosto da sociedade inglesa do Dezenove. Dessa vez, a história é dirigida pela Andrea Arnold, que já havia feito o bom "Fish Tank" em 2009.
Nada melhor do que ter duas mulheres envolvidas! Se Emily usava um nome masculino para publicar e conseguia fazer com que seus leitores imaginassem como um homem podia adentrar tanto na alma feminina, Andrea traz a sensibilidade da mulher para as telas. Uma sensibilidade absurda. Brilhante. Extasiante. Desde já, para mim, uma das maiores e melhores obras de Drama/Romance já produzidas para o Cinema. Absolutamente impecável. A começar pela escolha ousada da diretora de criar o personagem de Heathcliff como um homem negro (o que foi motivo de críticas por alguns que assistiram ao filme na Europa): africano e possivelmente ex-escravo (devido às marcas de chicote em suas costas), Heathcliff é acolhido nas ruas e levado pelo Sr. Earnshaw para morar no campo, no Morro dos Ventos Uivantes, junto a sua família. E se o livro tratava das diferenças de classe, agora a questão vai ainda mais a fundo: é étnica. Heathcliff é humilhado, espancado e chicoteado pelo filho mais velho de Earnshaw, Hindley, que o trata como inferior e não reconhece que, desde que chegara em sua casa, Heathcliff agora se tornara seu irmão também. A sociedade também é cruel, preconceituosa e intolerante - os vizinhos condenam o fato de Earnshaw ter acolhido não apenas um pobre morador de rua, mas, principalmente, uma pessoa negra, que muitas vezes é chamada de "macaco" e tratada como ferramenta de trabalho no campo. Mas dentro desse inferno no qual Heathcliff está inserido há uma luz de esperança: ela, Catherine Earnshaw, Cathy, a filha mais jovem e cheia de vida da casa.
E a história que se segue todos já devem saber: eles acabam se apaixonando, por mais dificuldades que venham do mundo externo, por mais humilhações que Heathcliff sofra e por condenações das outras mulheres à Cathy. É nessa relação apaixonada que "O Morro dos Ventos Uivantes" se torna não mais um filme qualquer, mas uma pérola dentro da história cinematográfica: é a 7ª Arte em seu estado mais puro e autoral. Andrea Arnold pega Cathy e Heathcliff pelas almas e nos entrega: a construção e desenvolvimento das personagens por meio da narrativa visual é algo surpreendentemente maravilhoso! Sem sombra de dúvidas esse filme é a sinestesia do cinema em seu lado mais poético. A diretora brinca com o sol e a chuva, a grama e a lama para nos mostrar como, aos poucos, o amor entre os dois vai tomando forma. E ela faz isso com aquela técnica pela qual sou apaixonado ao extremo: câmera em mãos. Sim, as cenas vão trepidar, vão "correr", vão viajar de um ponto a outro com rapidez variável e, principalmente, vão acompanhar Heathcliff sobre seus ombros, num estilo muito parecido ao que Aronofsky adotou em seus dois últimos filmes ("O Lutador" e "Cisne Negro"). A opção de Andrea nos torna íntimos dos acontecimentos. Não somos meros espectadores passivos e parados que observam um quadro: estamos sempre próximos, sentindo aromas e ouvindo respirações. Apenas uma das cenas já é suficiente para garantir esse filme no hall dos grandes, em minha visão: quando Heathcliff e Cathy adolescentes cavalgam o mesmo cavalo; a menina vai na frente e ele segue unindo seu corpo ao dela, mas a genialidade de Andrea é mostrar algo que, até então, eu nunca havia visto em filmes - ela faz a câmera roçar os cabelos esvoaçantes de Cathy, praticamente é possível sentir sua maciez e seu perfume! É algo de arrepiar, mesmo durando tão pouco tempo, tenho certeza de que isso nunca sairá de minha memória.
Também há muita simbologia nessa adaptação: cães que brigam o tempo inteiro, mariposas coloridas em cenários azulados e frios, galhos de árvores batendo no vidro da janela e ovelhas engasgando em seus próprio sangue quando são abatidas por Heathcliff ao mesmo tempo em que é insultado por Hindley e tem de se controlar. Creio que o filme todo é uma grande metáfora para o amor: ele é colorido e sem cor ao mesmo tempo, quente como o sol do verão e chuvoso, alegre e triste. A história criada por Bronyë é assim, e Andrea soube transmitir isso visualmente, incluindo flashbacks sensoriais.
O amor é algo que pode fazer sorrir ou chorar, curar feridas, dar forças ou - literalmente - matar. Acho que todos nós já passamos por isso. Ou passaremos. E, como disse um amigo meu esses dias: quando perdemos um amor, a gente envelhece, não importando a idade que tem. Obviamente há aqueles que só amaram uma vez na vida, que encontraram a pessoa ideal e que vivem felizes sem nunca terem conhecido a dor de um coração que sangra. Mas esses casos são raros. A obra filmada por Andrea Arnold mostra a outra face do Amor: aquela que faz você cair no chão e sofrer sem ter forças sequer para gritar - tal como Heathcliff na primeira cena do filme.
Um filme necessário.
Alex Martire
Alex Martire