Impressões Recentes

A Separação, 2011




(30/11/2011) – A 35ª Mostra Internacional de cinema de São Paulo, aberta sob a notícia da morte de seu fundador, o crítico Leon Cakoff, realizou uma justa homenagem a Sergei Paradjanov – preso sob Stalin, Brejnev e Andropov – e também a Jafar Panahi, condenado à prisão domiciliar e a não fazer filmes pelos próximos 20 anos, e contou com a presença do cineasta Mohsen Makhmalbaf, diretor, entre outros, de “Um instante de inocência” (1996).

A Mostra exibiu a obra “Olhando Espelhos”, de Negar Azarbayjani (2011), que narra a história de uma taxista e uma transexual no país pós-revolução islâmica. Tanto o filme de Azarbayjani como “A separação”, de Asghar Farhadi (2011), são, evidentemente, filmes de oposição, mas nenhum deles se chocou de frente contra as fraudes nas eleições de 2009 que elegeram Mahmoud Ahmadinejad como fez Panahi, ou desobedeceu à ordem judicial de não fazer filmes por 20 anos como o co-diretor de “Isto não é um filme” (2011), Mojtaba Mirtahmasb, que sofreu apuros para levar o não-filme  a Cannes.

Em fevereiro, logo depois de o júri de Isabella Rossellini  premiar “A separação” com o prêmio máximo da Berlinale, Farhadi fez votos para que terminasse bem o impasse em torno da prisão de Panahi. O Urso de Ouro trouxe consigo, portanto, a dimensão de uma ausência – ou de um exílio, tão presente na obra premiada e impresso, com suas peculiaridades, em outros artistas do Irã pós-revolução.

Apenas para ficar entre os casos mais conhecidos no Ocidente, Marjane Satrapi, autora de “Persépolis” (2007), iraniana, exilou-se em Viena e hoje vive na França. A história do filme “Cópia fiel”, de Abbas Kiarostami (2010), nascido clássico, passa-se predominantemente na Itália, com atores franceses, sendo o diretor um dos únicos que continuaram em Teerã depois da Revolução de 1979. Como lembra Jorge Furtado, Mohsen Makhmalbaf e sua filha deixaram o país depois de um atentado a bomba e hoje vivem escondidos e em segredo; seus familiares são perseguidos e ameaçados de morte. A atriz Marzieh Vafahmer foi condenada a um ano de prisão e a sofrer 90 chicotadas por participar do filme “Minha Teerã à venda”, de Granaz Moussavi (2011).

Este breve contexto nos fornece alguns subsídios mínimos que nos permitem passar à leitura do filme de Asghar Farhadi.

Em primeiro lugar, a culpa, em seus mais diversos sentidos, é uma articulação importante que ganha destaque ao encontrar, como pano de fundo, a negativa à presunção de inocência, tanto no plano institucional (ao nos defrontarmos com um sistema inquisitivo baseado na cultura do inimigo, em que a negativa dos direitos fundamentais é a regra e a liberdade é a exceção), como no plano das relações (mutuamente acusativas e hostis).

Os fatos que compõem a narrativa são construídos a priori pelos personagens a partir de suas próprias aspirações e conveniências. O espectador presencia a construção das diferentes versões e, ainda assim, não consegue se desemaranhar da teia de contradições e dilemas. É como se Farhadi pedisse gentilmente, por meio da linguagem cinematográfica, para que admitamos estar no (desagradável, porém seguro) papel de julgadores, que não somos inocentes nesta obra, tampouco objetivos ou desinteressados: ao utilizar a perspectiva subjetiva do magistrado, faz com que aquelas pessoas encarem diretamente os nossos olhos e somos tentados a indagar silenciosamente: quem será o culpado diante de mim?

Estamos no contexto da separação matrimonial, mas também entre inúmeras rupturas, que transcendem em muito o caso privado do marido e da esposa. A causa do rompimento está presente durante todo o filme, mas não pode ser dita. Simin questiona como educará Termeh, sua filha, em um país nesta situação. Qual situação? Ela emudece diante do juiz. Mas, se a discussão é muito mais ampla do que um divórcio banal, é justamente no turbilhão de subjetividades doméstico que Farhadi conta a sua história, impedindo, de maneira perspicaz, o distanciamento que talvez auxiliasse o espectador a alcançar uma pretensa depuração objetiva do ocorrido. O observador é posicionado ali na sala da casa, entre uma crise conjugal, um velho doente, uma criança sensível e um mundo de dilemas morais.

Há um atordoamento e uma dificuldade (talvez impossibilidade) de se resolver o problema que se coloca, e estamos diante de uma sociedade em crise, convulsionada. O espectador parece olhar através da doença do pai, perdendo em objetividade e racionalidade e, sempre que busca se posicionar como juiz e sentenciar, encontra-se diante de paradoxos e contradições praticamente intransponíveis. A cada movimento em falso de uma das “partes” (trata-se, sobretudo, de um julgamento), a outra também revela seu quinhão de culpa, e é retomado um equilíbrio insuportável. Afirma-se a todo o momento: ambas as partes são culpadas – o espectador concorda. Então seriam ambas inocentes? Não neste filme de Farhadi; não na Teerã de 2011.

Assim como no Rashomon de Kurosawa, estamos diante de diferentes versões, construídas por cada um dos personagens, que não podem dialogar entre si justamente porque partem de premissas diferentes, de critérios diferentes e, sobretudo, de compromissos diferentes: ora a peça-motriz é a honra, ora a fé e o sectarismo religioso, ora a lógica processual inquisitória iraniana, ora o mero oportunismo. Nenhum dos personagens-autores busca construir sua história tendo como compromisso a verdade; sequer o juiz-acusador, voltado ao formalismo e à realidade processual do sistema jurídico do seu país.

Quase ao final do filme, quando Razieh é instada a jurar sobre o Corão, o critério moral se choca com o compromisso religioso, que prevalece. O marido pede para que ela mantenha a história, negligenciando a verdade que parecia perseguir com determinação cega, pois trabalha a partir da honra: argumenta que sairia humilhado caso não prosseguisse com o juramento. Sua honestidade é desconstruída, assim como foi a de Nader, o acusado. Por fim, ao se dar conta do impasse instaurado, reage com a brutalidade que conhece, pois não há uma solução racional que dê conta da situação ou que a resolva por inteiro de maneira satisfatória.

Pelos olhos de Termeh, a filha do casal que se separa, percebemos algo que se perde: não apenas os laços com a unidade dos pais, do ambiente privado da casa, mas a própria perda da inocência – individual ou coletiva. Volta-se finalmente ao processo inicial, muito mais íntimo do que aquele movido por Razieh: o divórcio entre Nader e Simin. Determina-se que caberá a Termeh decidir com qual dos dois deverá ficar. Independentemente do resultado e da sentença dos julgadores, o peso da decisão sobre este emaranhado indecifrável em que o Irã se encontra é impiedosamente deixado nas mãos da próxima geração.

Leonardo Branco





Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo, 2009.




(17/05/2010) - Proponho o exercício de ler um filme. Viajo porque preciso, volto porque te amo. Primeiro, a localização dos realizadores, das biografias, da formação acadêmica, da obra pregressa.

As camadas mais evidentes que presidem a narrativa: a transposição do rio São Franciso, o olhar do geólogo sobre o Nordeste setentrional, a dor da separação.

Um plano mais atento: a forma da narrativa, a primeira pessoa, a linearidade do tempo presente, o personagem jamais visto. Os grandes planos. A acuidade fotográfica.

O labor técnico: a multiplicidade dos suportes do registro cinematográfico. Uma câmera digital, uma máquina fotográfica. Uma bitola 35 mm, onerosa, uma Super8, acessível ao cineasta mais jovem, tão cara a Fernando Spencer no Recife de outros dias. O que escapa do olhar? Quando se usa a 16, quando a 35 a eu mais leigo? O que a experiência sobre a cena modifica ou é modificada? Quais as dimensões de cada uma das sensorialidades dadas a conhecer pelos cineastas? Por que motivo uma em detrimento da outra, em que momento?

Quanto ao caminho: um relato de viajante, de peregrino, descendente da cultura retirante. Um diário. Uma obra epistolográfica a Galega, destinatário já inexistente. A riqueza do olhar, uma descoberta. A viagem transformadora, o rito de passagem. Da costa ao sertão. Do mito à aridez da experiência do vivido. Viaja porque precisa se reencontrar.

O jogo de opostos: a observação metodológica do geólogo exato, a angústia do espírito ferido. Quer voltar, não quer voltar. A despedida da esposa: não volto porque ainda te amo. E se liberta: não há mais como voltar.

No uso dos planos e dos enquadramentos: conforta e desconforta o narrador-espectador no espaço da cena, detrás de um caminhão baú, diante dos grandes planos.

Narrador-cineasta: observa o casal de velhos, afogados no peso de suas fotos, ex votos, imagens. O marido sai do plano. Pede que volte. Não é ele quem vai separá-los, mas representa a separação do casal de suas memórias. Representa a vazão do rio, o progresso, a flecha do tempo.

No plano sinestésico: a sobreposição das leituras: a transposição da alma, afogada no amontoado da memória. Ao fim se liberta do afogamento, mergulha para a vida. A aridez do solo, a desolação da paisagem, do personagem. As cidades esvaziadas. O vazio dos futuros desalojados; nada está adiante. A imagem chapa a realidade documental; os sons desmentem os olhos e nos deslocam ao plano mítico. A canção do sapateiro é ponto alto, inocente, desperta risos, afeição, prazer estético. O sapateiro entretece som e imagem, prega no couro do calçado mito e realidade.

Uma crítica: o cineasta não explora a geologia, não ensina ao espectador a linguagem da pedra, não mostra o lento movimento da montanha, não desvenda os desvãos da linguagem técnica, não desenha o contorno da bacia, oportunidade perdida.

A dimensão social: se não é explícito como Madame Satã, é sensível. A prostituta deseja a vida-lazer. O que é lazer, pergunta, é ter alguém para amar, responde. Uma casa. O narrador paga por prazer, redescobre-se. Com outra garota, desiste no caminho para o programa. Olhar triste da garota, incômodo. Desconforto persistente, dolorido. A miséria salta aos olhos, a ignorância salta aos olhos, a religião assalta os olhos: a festa da Padroeira. Padre Cícero. Juazeiro do Norte está sempre cheia de gente.

A política: o rio, a obra, por que a insistência, pergunta, não é problema seu, responde, dá de ombros, os realizadores não respondem. As cidades se esvaziam. A diversão rudimentar do circo diante da iminência do dilúvio. Um casal conversa, é ricamente descrito, agora já é possível rir, maravilhar-se com a presença do outro.

De um grande mérito: tem coragem de inovar, de contrariar os manuais, é exímio com o tratamento da imagem, forma e conteúdo. É experimental, não amador. É arte e entretenimento. Como o rio, busca um novo caminho.


Ao final do filme, depois de longos mergulhos, experimentei uma sensação de profunda imersão. Poucos, senão nenhuns, levantaram-se até muito tempo depois de se erguerem os letreiros. A música deu seqüência à narrativa e tornou trabalhoso se desapegar da poltrona. Um filme rico de ser lido.

Leonardo Branco



A Caverna dos Sonhos Esquecidos, 2011.




"E se o arrancarem à força da sua caverna, o obrigarem a subir a encosta rude e escarpada e não o largarem antes de o terem arrastado até a luz do Sol, não sofrerá vivamente e não se queixará de tais violências? E, quando tiver chegado à luz, poderá, com os olhos ofuscados pelo seu brilho, distinguir uma só das coisas que ora denominamos verdadeiras?" - Diálogo entre Sócrates e Glauco (Platão. A República. Livro VII)


(15/11/2011) - Assisti a este documentário em duas versões: primeiro pelo modo convencional, em 2D, direto do meu notebook, e, depois, em 3D, em uma boa sala de cinema. É outro filme. Finalmente descobri que o 3D pode ser realmente uma linguagem relevante para o cinema (não é um acessório ou um enfeite neste caso, mas um instrumento). Sem querer me alongar, na primeira cena dentro da caverna caiu meu queixo. A imagem toca, emociona.

Pelo desenvolvimento do registro, suspeito que a intenção inicial do diretor teria sido fazer um documentário sobre pinturas rupestres em geral e filmar as cavernas de Lascaux, mas, quando descobriu que isto não seria possível, resolveu focar suas lentes afiadas (lascadas) no complexo descoberto por Jean-Marie Chauvet, às margens do rio Ardèche, no sul da França.

As limitações de registro são evidentes: os gases tóxicos da caverna permitiam a permanência da equipe apenas uma hora por dia, e desde que não ultrapassassem o limite físico da passarela metálica de 60 cm instalada para possibilitar a caminhada (necessariamente em fila) dos exploradores-cineastas, de modo a comprometer o mínimo possível a preservação.

Talvez estas dificuldades da etapa de produção justifiquem os grandes saltos para os Alpes suevos da Alemanha. Conversei com amigos que sequer perceberam que Herzog havia filmado em mais de uma caverna. Mas, ainda que o recorte escolhido seja de alguma forma questionável, o tema não. As profundezas da terra exercem um verdadeiro fascínio sobre qualquer ser humano: os perigos e as aventuras de Julio Verne, os anões mineradores de Tolkien, a espiritualidade das embriagadas e embriagantes pítias de Apolo e os desabamentos impiedosos da Pachamama; tudo o que há de mais primitivo e espiritual vem à tona ao deslizarmos à escuridão sem fim das fendas da caverna.

Conforme o argumento se desenvolve, o olhar aguçado do historiador, do arqueólogo, acaba cheirando o perigo do anacronismo, das generalizações, e isto é sim um incômodo, uma pedra no sapato que perdura ao longo do filme, que faz perguntar, por exemplo, por que estaria ali um deslocado perfumista no lugar de um profissional da área. Incomodam as perguntas feitas ao jovem pesquisador Julien Monney, as ausências. Existe ali algo que se perde, uma profundidade que poderia ter sido explorada.

Como foram feitas aquelas pinturas paleolíticas? Por quem? Com qual material? Fala-se no neanderthal (e a sua incapacidade simbólica), fala-se no cro-magnon, no sapiens-sapiens, mas qual a relação entre eles? Eles interagiriam, digladiavam-se? Por que o sapiens não representa o neanderthal em suas pinturas? Será indiferente à sua existência? Ou ele se vê como superior, ou como igual? Que lugar seria este?

Um homem se veste como se vestiria alguém àquela época: causa incômodo a teatralização da história, tão própria dos “museus de artes naturais”. Para piorar, o homem toca, com a flauta reconstituída, o hino norte-americano, o que causa outro desconforto: desejaria constatar o domínio das notas da escala musical que permitiria a execução de uma música contemporânea conhecida de todos nós? Desejaria apenas fazer uma piada? Qual a intenção da indulgência da edição ao manter a tomada?

E por que chamar de pré-história se de fato há história (há ali uma narrativa, uma história)? E como o governo deve lidar com a descoberta? Quais os limites entre a pesquisa e a preservação? Quais as diferenças do olhar entre o biólogo, o espeleólogo, o arqueólogo, o turista, o geólogo, o antropólogo, o botânico, o zoólogo ao lidar com a descoberta? Construir um duplo da caverna ao lado dela? E aquele final, o que era aquilo? Filmar uma usina nuclear, uma estufa com espécimes albinos, sugerindo uma alteração evolutiva? Não estaria a narração em voice-over do diretor exageradamente dramática?

Independentemente de como se responda a estas perguntas, é uma obra importante para o cinema, sobretudo pela forma, que é particularmente importante nesse filme, e o diretor traz isso para a discussão. Sob este ângulo, a análise cresce, porque o olhar aqui é o do cineasta. Sua preocupação é com a construção da linguagem, e aqui ele parece ser exímio.

Primeiro ponto, evidente: é um filme em 3D. E se justifica? Sim, basta ver em 2D e depois no cinema. É possível quase esbarrar nas pontiagudas estalagtites e sentir a claustrofobia, a textura da rocha, a quase-aflição do soterrado vivo pelo peso da história e da natureza. Vendo pelo meu notebook, não tinha sequer percebido que o painel dos cavalos tem um declive daquele tamanho. O desenho acompanha a estrutura tridimensional das paredes, tornando relevante a profundidade e alterando os pontos de fuga em uma complexidade graciosa, quase instintiva – e praticamente imperceptível pela projeção indiciária permitida pela dupla dimensão da linguagem convencional. A Vênus coberta pelo Minotauro (única figura humana desenhada na caverna) só fui entender vendo no cinema. A linguagem traz algo próximo da experiência do vivido (falando chato: produz a tal da catarse).

Em segundo lugar: busca inovar na experiência sensorial (acresce à fantasmagoria cinematográfica). O que eu quero dizer com isso: o que antes era apenas a experimentação do 2D ganha profundidade. Ok, mas não é só isso. Ele pergunta: e se fosse possível ir mais além? E se o realizador pudesse acessar outros sentidos do aparelho sensorial do espectador? Se fosse possível ao cineasta dar a conhecer a seu público a corrente de ar frio vinda das rochas que permitiu a três homens adivinharem a existência de uma galeria subterrânea em dezembro de 1994? Aqui é possível dar relevância à presença do perfumista. Qual o cheiro da caverna? Ar preso há milhares de anos, gases tóxicos das plantas subterrâneas, ossadas, fogueiras apagadas, terra úmida? E os barulhos? Que música produziam e ouviam do instrumento de sopro? Cantariam aqueles homens? Gritavam, urravam, gemiam, ganiam? Bateriam palmas? Estalariam a língua contra o palato? E o tato? O calor e o frio? O torpor? E o gosto desta água, podre, ferrosa, envelhecida?

Em terceiro lugar, a construção da obra como problema, e não como dado. A inovação é evidente já fora da caverna. Quando assisti pela primeira vez, como muitos, fiquei pensando como ele teria filmado o primeiro plano-seqüência do “arco do triunfo” natural esculpido na rocha pela erosão e cravado no penhasco no desfiladeiro de Ardèche.

Ao reparar na trepidação, conclui que seria um elaborado sistema de cordas, roldanas e polias, por meio de um sistema de rapel que içasse a câmera, pois grua alguma seria capaz daquilo. Estava errado, evidentemente. Ele faz questão de mostrar isso. E como filmar dentro de uma caverna, com todas as limitações que lhe são inerentes? Com todas as dificuldades? Onde colocar a equipe de filmagem? Ele retira o glamour da cadeira do diretor e registra a "mão na massa", como se nos dissesse: veja, isso não apareceu do nada, alguém veio e fez isso. Este filme, estas pinturas. De outro lado, trata-se, a olhos modernos, de uma galeria de arte permanentemente fechada ao público: a tarefa do cineasta como dar a conhecer, tornar evidente e vivo cresce como um dos motores da narrativa.

Em quarto lugar, o papel da iluminação. A luz trepida e não se fixa porque quer experimentar a trepidação de uma fogueira. Os painéis de LED (três painéis planos de luz fria alimentados por cintos de baterias) buscam simular a visão das figuras para o homem que já não está mais ali. Em sua dança imprevisível, o fogo esconde e dá a ver momentos diferentes da representação pictográfica: ora se vê uma perna do bisão, ora outra - o bisão corre. Talvez alguém narrasse uma caçada mítica, heróica (um sonho hoje já esquecido) aos seus consortes.

Talvez outro alguém batesse as pedras para imitar (representar) os cascos se chocando com o chão, enquanto outro cantasse, enquanto outros assistissem, espectadores. Um protocinema? Ou um cinema muito mais sofisticado do que o nosso, pelo sem-número de experiências que dá a conhecer? Nós tentamos simular profundidade, cheiro, cor, imagem, som, tato. O deles já tinha tudo isto. A concepção central de frames persiste mesmo na era digital. Tal qual o símio que arremessa para cima o instrumento, que se transforma em uma espaçonave no “2001” de Kubrick, questiona-se a própria idéia de progresso ao mesmo tempo em que a reafirma.

Para quem não é de São Paulo, o filme estreou por aqui no contexto da 35ª Mostra Internacional de Cinema, que teve como tema de abertura justamente o Piteco do Maurício de Souza projetando imagens e a ilusão de movimento nas paredes de uma caverna. Nada mais apropriado.

Em quinto lugar, como desdobramento dos parágrafos acima (e muito mais poderia ser dito), a presença do mito platônico como indício da realidade inapreensível; de outro lado, a caverna como figura de linguagem para a sala de projeção, a fogueira como projetor que nos permite o acesso àquilo que, de outra forma, seria inalcançável. Nós somos unidos ao homem que viveu há trinta e dois mil anos: juntos a ele, assistimos, estarrecidos, à maravilha (mirabilia) da pintura. Falamos de nossos mitos vivos e perdidos, de nosso cotidiano e de nossos ancestrais. Assistimos, perplexos, a uma inovação técnica de nossa era. Tal qual o par de crocodilos, observamos a nosso outro (ao nosso igual) como se olhássemos a um espelho.

Leonardo Branco



O Moinho e a Cruz, 2011.


E lá vou eu falar sobre a coisa que mais me fascina (e faz com que meus amigos durmam): a paisagem.

Não poderia ser diferente, é impossível não entrar no tema "paisagem" quando falamos de Pieter Bruegel, pintor holandês (ou flamengo, se preferir) do século XVI que praticamente centrou todo o seu trabalho na retratação do amplo, do diversificado, do heterogêneo. Bruegel está tão intimamente ligado às paisagens que, durante a defesa de meu Mestrado há 1 semana, um dos professores da banca (Adílson Avansi de Abreu, DG da FFLCH) apontou para algo que eu desconhecia até então: o início do discurso sobre paisagem na Geografia se deu graças aos trabalhos do holandês. Isso, por si só, já me encheu de entusiasmo para estudar com mais carinho as obras de Bruegel, e podem imaginar qual foi a minha surpresa quando me deparei com esse filme dias atrás!

Dirigido pelo polonês Lech Majewski e tendo em seu elenco dois atores de peso, tais como Rutger Hauer (Bruegel) e Charlotte Rampling (Virgem Maria), "O Moinho e a Cruz" é um espetáculo, um tesão visual. Majewski utiliza a mesma técnica que o saudoso e romântico Eric Rohmer usou em seu "A Inglesa e o Duque", de 2001: colocar as pinturas originais para dar o pano de fundo das cenas, criando aquela caracterização estática e vibrante em seus mais diversos tons. As pessoas então, literalmente, caminham dentro dos quadros de Bruegel. No começo é estranho, dá um certo desconforto por ser algo tão nitidamente "forjado", e talvez até cause arrepios aos que esbravejam contra o Pós-Modernismo: o filme é uma constante metalinguagem - é Bruegel que observa sua própria pintura enquanto ela se desenvolve, são os personagens do quadro atuando em cena, gesticulando, falando. Enfim, é um processo de criação que está diante de nossos olhos. Genial.

O quadro em questão é "A Procissão para o Calvário", de 1564.


Como um estudioso da Arte retratada, Majewski vai desmembrar a pintura e analisar cada segmento, dando sua explicação para o todo que vemos em cena. Temos, pois, o holismo de Bruegel se fazendo presente. Embora o termo tenha sido cunhado no século XX pelo Arthur Koestler, ele se aplica a Bruegel uma vez que, do mesmo modo, é aplicável à paisagem. Por "holístico" temos em mente algo que é completo em si mesmo; a palavra deriva de "hólon" que, em grego, significa uma parte (holos) que, relacionada às outras partes, forma um todo (o sufixo on de hólon caracteriza a noção de totalidade). Por outro lado, temos na Holanda Renascentista a ampliação da noção de paisagem posta em pinturas: o termo "paisagem" surge na Alemanha (sim, eu sei que não havia Alemanha ainda mas, para melhor entendimento, chamemos assim) do século XII sob a denominação Landschaft. E o cerne do termo reside em land, que carrega consigo a ideia de terra cultivada pelo homem. Bingo! Todas as pinturas (ou quase todas) de Bruegel têm homens trabalhando a terra de algum modo, ou modificando o ambiente ao seu redor (com casas, estradas, utensílios etc.). Assim caímos na interessante palavra proposta pelo antropólogo Tim Ingold no fim do século passado, a taskscape, ou seja, a paisagem-trabalho. A paisagem-trabalho é a dinamicidade, é o cotidiano, é o ir e vir, o trabalhar em conjunto (ou sozinho, mas que acaba, por fim, fazendo parte de algo maior dentro da sociedade), é o escutar, o sorrir, o amar e o chorar - em outras palavras, é a atuação do homem sobre a natureza, convivendo com ela em simbiose (ou mutualismo, se preferirem), sem um grau de hierarquia, havendo apenas reciprocidade. 

E o fruto dessa paisagem-trabalho é aquilo que nos chegou retratado por Buegel, a paisagem em si. Temos diante de nossos olhos uma tela pintada que é um instantâneo de algo que, um dia, foi dinâmico, é a "marca" no Tempo. E essa paisagem não necessariamente tem de vir de uma paisagem-trabalho que foi observada diretamente: ela pode ser uma criação, claro, mas sempre estará presa aos conhecimentos prévios - e sempre em construção - dos seres humanos - afinal, Bruegel pinta uma cena bíblica; e mais: uma cena bíblica ambientada no seu presente, no seu cotidiano (algo muito comum no Renascimento, como sabemos): temos os soldados espanhóis fazendo o papel de carrascos romanos de Jesus (e a Espanha foi um grande problema para os flamengos no século XVI), temos camponeses e as mulheres que choram a dor de Cristo (entre elas, Maria, sentada, em destaque no canto inferior direito) com roupas do Quinze, portando objetos da época em que o quadro foi pintado. É quase possível ouvirmos o falatório da cena, escutarmos os carros de transporte, as lamentações, o vento que move o moinho... apesar de ser uma paisagem, Bruegel tem o dom de nos fazer - quase instantaneamente - visualizar a paisagem-trabalho

E esse é o grande mérito de Lech Majewski: ele faz o sentido inverso da pintura: nos apresenta personagens vivos, atuantes, humanos, e como eles se relacionam entre si e com o mundo ao redor antes de serem imortalizados estaticamente no quadro de Bruegel.

Um filme brilhante, em todos os sentidos.

Alex Martire


Fausto, 2011.



O mais recente filme de Alexander Sokurov venceu o Festival de Veneza de 2011 e fechou a tetralogia de biografados (Hilter em "Moloch", Lenin em "Taurus", e Imperador Hirohito em "O Sol"). E, para mim, fechou com chave de ouro! Não apenas é o melhor - e mais consistente - filme da tetralogia, como também é o melhor filme do Sokurov que vi.

A história é uma releitura da obra de Goethe, o que já nos deixa um pouco mais à vontade: sabemos que a trama é sobre a relação entre o Diabo e o Doutor Fausto, e como o sujeito acaba vendendo sua alma para satisfazer seus desejos. No caso do filme de Sokurov, a vontade do doutor é a bela Margarete. Mas como nada é perfeito, Fausto vive quase na miséria e não tem dinheiro sequer para comer. Certo dia ele conhece Mauricio, o Mefistófeles, que o acolhe, lhe dá dinheiro e se torna seu amigo. Uma noite, porém, numa briga de bar, o irmão de Margarete é assassinado pelas mãos de Fausto e ambos (diabo e doutor) tentam esconder a verdade da pobre moça - mulher que Fausto, aos poucos, vai conquistando com mentiras e moedas de ouro. Obviamente, a felicidade tem um preço: para conseguir tudo, Fausto tem de assinar um contrato com o Diabo, cedendo-lhe a alma. E o filme segue, mostrando as consequências de se viver "marcado" por Mefistófeles.

Acho que esse é um dos filmes menos "complicados" de Sokurov. Não é necessário um grau alto de abstração para entendê-lo: os questionamentos sobre a vida e a morte, a carne e a alma, a pureza e a sujeira, a fome e a satisfação (entre outros) conseguem se resolver nos diálogos e imagens, sem requerer o uso de simbologias complexas. É claro que há, sim: por exemplo, a cena inicial é, literalmente, fálica, é a dependência de Fausto de seu pai, e depois do Diabo, e a dominação de Fausto sobre Margarete (que é passiva a tudo, inclusive ao seu destino). No meu caso, só consigo fazer associações simples como essas, mas tenho certeza de que qualquer pessoa com mais conhecimento de psicologia conseguirá extrair boas reflexões visuais do filme. Por sinal, que visual! Sokurov disse, na época em que ganhou o Festival, que seu diretor de fotografia era um gênio. Sim, Brunno Delbonnel beira ao absurdo da perfeição. É muito difícil traduzir em palavras o que "Fausto" mostra. Acho que esse é o filme mais lindo de Sokurov. As cores, as distorções, as claridades, os "borrões", tudo impecável. Sem contar que o filme parece um quadro em movimento: você pode pausá-lo a qualquer instante e terá um retrato que serviria muito bem para pendurar na parede da sala. Filmado na Espanha e na Islândia (o "inferno" é lá), a natureza tem um papel (como sempre nas obras do diretor) fundamental na estética e narração: o cuidado da equipe em selecionar os locais - e os tipos de tomadas - é incrível, nada está lá por acaso: tudo reforça o inferno pessoal de Fausto, uma pessoa que não consegue alcançar a felicidade nunca.

Como disse, "Fausto" é minha obra sokuroviana predileta (venceu "Arca Russa" em minha preferência)! E consegue ter um mérito ainda maior por não ser um de seus filmes que me deu sono: tudo aqui é fluido, mesmo em quase duas horas e quinze minutos de duração. Recomendadíssimo aos fãs do diretor, ou aos que pretendem se aventurar pela filmografia do Sokurov sem traumas.

Alex Martire




Os 12 Macacos, 1995.


Tarefa difícil escrever sobre "Os 12 Macacos". É um dos meus filmes preferidos. Sempre foi, desde seu lançamento. E mesmo quando assisti pela primeira vez, quando ainda era muito jovem pra entender direito a proposta do filme, eu o adorei. Creio que tenha sido por causa daqueles aparelhos todos que aparecem no filme, ou a cena em que o Bruce Willis veste aquela roupa meio de astronauta e se depara com uma Filadélfia no inverno repleta de animais selvagens: sempre amei filmes de ficção científica (e já escrevi sobre minha paixão por "Star Wars", que carrego desde a infância mais tenra).

Esse é o filme de sci-fi por excelência de Terry Gilliam. O único que trata diretamente sobre a ciência ficcional, e um dos que mais dá "pano pra manga" para reflexões. Não é um filme fácil e é necessária muita atenção para não se perder, pois, juntos com James Cole (Bruce Willis), viajamos a todo instante entre os anos 1990 e 1996 (e além). Em 1997 um vírus devastou 5 bilhões de humanos, deixando os animais soltos no mundo. No futuro, James Cole é um prisioneiro que é "voluntariado" a viajar para o passado a fim de entender como surgiu tal vírus. O problema, claro, é que ele é tido como louco quando regressa a 1990, e acaba internado num hospício, onde conhece a psiquiatra Kathryn Railly (a sempre bela Madeleine Stowe) e um colega também paciente, o Jeffrey Goines (em uma atuação muito boa de Brad Pitt). Goines é um fanático por animais e, com todas as reviravoltas do filme, Cole descobre que o sujeito estaria ligado a um grupo chamado "Exército dos 12 Macacos", responsável por liberar o vírus devastador.

Acho esse um dos filmes mais maduros de Gilliam. É um dos mais sérios, com certeza, e um dos que tem o final mais "negativo" dentro da filmografia do diretor. A mensagem que ele passa é bem interessante, para repensarmos se realmente esse mundo merece a raça humana, e se há soluções para o que fazemos com a Natureza sistematicamente. Curiosamente, é um dos filmes menos "gilliamnianos", na minha opinião: não há toda aquela viagem e fantasia dos filmes anteriores, mas o modo de narrar a história, algumas tomadas e pitadas de humor não deixam dúvidas de que seja mais uma grande obra de Terry Gilliam.

Alex Martire


Medo e Delírio, 1998.



Terry Gilliam, aqui, deve ter fumado ou cheirado de tudo durante a escrita de seu roteiro. "Medo e Delírio" é a obra mais nonsense de Gilliam, uma ode aos efeitos dos alucinógenos. Muito bem feita, por sinal.

O pior é que não dá para dizer muito sobre a história do filme: acho que a gente também se entorpece de tal modo que não consegue lembrar direito quando a experiência termina. É meio sem pé nem cabeça, mas vejamos: são dois caras - Raoul Duke (Johnny Depp) e Dr. Gonzo (Benicio Del Toro) - que vão em busca de usar todas as drogas possíveis e imagináveis em Las Vegas em 1971. E acho que é só isso... Não tem início nem fim, e o meio é de uma porra-louquice imensurável. Mas essas situações sob efeito de cocaína, LSD e maconha é que dão a graça ao filme. E é bem engraçado! A cena dos dinossauros no bar do cassino é ótima e a primeira vez que experimentam éter também é impagável.

O grande mérito de Gilliam nesse filme é nos fazer viajar juntos com os dois caras. Você acaba entrando no clima alucinado e - mérito total do diretor - acaba se sentindo incomodado na parte da obra onde ambos estão "caretas". Gilliam usa bastante os efeitos especiais para criar deformações nos rostos das pessoas e também para representar em tela aquilo que supostamente os protagonistas enxergam. E também são poucas as cenas onde a câmera tem uma movimentação "tradicional": tudo aqui se (re)mexe, desfoca, distorce. A trilha sonora é excelente, ambientando muito bem a época.

"Medo e Delírio" é um filme em que você se pega pensando quando acaba: "Mas eu não entendi nada!". E talvez seja esse o maior mérito de Gilliam. De todas, a obra mais "viajada" do mestre.

Alex Martire


Os Bandidos do Tempo, 1981.


Em 1981, Terry Gilliam lançou seu segundo longa, dessa vez já não tão ligado aos pythons. Talvez por isso ele tenha deixado um pouco o humor pastelão de lado e focado mais na parte fantasiosa.

Gilliam faz com que viajemos com Kevin, um garoto que sofre com a falta de atenção dos pais e, numa determinada noite, tem seu quarto invadido por um grupo de anões que fogem do Ser Supremo. Os anões carregam um mapa que aponta brechas no tempo, podendo viajar para diversas épocas da História. Pego de surpresa, Kevin se junta à aventura e acaba se perdendo junto com os anões (que reclamam para si mesmos o título de os maiores ladrões do mundo). Mas a história se complica quando acabam por ter de se deparar com o Mal personificado.

E aqui Terry Gilliam começa a acertar a mão! O filme é delicioso no quesito aventura/fantasia tão típico dos anos 80. Com um orçamento maior, Gilliam esboça aqueles cenários maravilhosos e esquisitos que vamos ver no restante de sua obra. A ambientação na França revolucionária, na Idade Média, na Grécia de Agamemnon e nas Grandes Navegações está muito bacana, e os efeitos estão dentro da média para a época (se levarmos em conta que "Star Wars" estava dividindo águas). Mesmo que a voz de Kevin seja um tanto irritante, o forte do elenco está nas figuras dos anões, cada um com sua característica específica. "Os Bandidos do Tempo", contudo, não é um dos filmas mais bizarros de Gilliam: é até um tanto previsível. Mas dá para se divertir com a visão de Gilliam sobre Deus e o Diabo.

Alex Martire


Jabberwocky - Herói por Acidente, 1977.


Primeiro longa-metragem dirigido por Terry Gilliam, em 1977. Ele mal havia saído do Monty Python na época e quase todos os integrantes da trupe estão presentes no filme (se não todos, não sei dizer).

A história conta a aventura, a saga de Dennis Cooper, um plebeu da Idade Média, que, sendo deserdado pelo pai no leito de morte, parte para a cidade a fim de tentar a vida no Castelo e ter condições de se casar com sua amada, a glutona Griselda (plebeia que não dá a mínima para Cooper). A vida do pobre homem, que já não é fácil, se torna ainda pior quando o Jaguardarte começa a atacar o vilarejo, derretendo a carne das pessoas, deixando apenas as cabeças presas aos esqueletos. Desajeitado, Cooper acaba se envolvendo com a filha do Rei e tendo de ir à caça do monstro.

Nesse filme temos o elemento de Fantasia que Gilliam herdou do Python, e sua capacidade de criar histórias bizarras e envolventes. Contudo, para mim, acho o humor da obra um tanto "sem sal". O problema está justamente no fato de "Jabberwocky" praticamente ser um filme pythoniano, digamos. E, pessoalmente, não consigo achar graça no trabalho deles (longe de menosprezar a importância do grupo, estou apenas batendo na tecla do humor). Acho o filme forçado por conta disso. Para quem admira Monty Python, tenho certeza de que vai se esbaldar com o primeiro trabalho de Gilliam na direção. De toda a filmografia, acho "Jabberwocky" o trabalho mais fraco do diretor. Ele dava sinais daquilo que seria mais desenvolvido nos demais filmes, mas nesse caso específico, nem o teor da fantasia e da ventura consegue salvar a obra quando comparada as que vieram depois.

Alex Martire


O Pescador de Ilusões, 1991



Mais uma vez Terry Gilliam. 

"O Pescador de Ilusões" talvez seja um de seus filmes em que não há Fantasia tão escancarada, mas isso não quer dizer que ela não exista. Não, não. Ela é sutil aqui, mas é o que dá o tom "gilliamniano" à obra, ela é quem conduz o espectador pela mente do "louco" Parry, um cavaleiro saído dos romances medievais e que habita a Nova Iorque do século XX. Acho que, das obras de Gilliam, essa seja a que mais bate no assunto "redenção".

O filme gira em torno de Jack (Jeff Bridges), locutor famoso de rádio que, ao desdenhar de seus ouvintes, acaba sendo responsável indiretamente por um assassinato em massa ocorrido em um restaurante. Três anos depois, desempregado e falido, Jack trabalha numa vídeo-locadora com Anne, a dona e sua amante. Sua vida repleta de bebedeira toma novo rumo quando, numa tentativa de suicídio, é resgatado por Parry (Robin Williams), um mendigo que sonha encontrar o Santo Graal e que é apaixonado pela moça que trabalha em um prédio chique de NY, a Lydia. As vidas de Jack e Parry se tornam ainda mais próximas quando o ex-locutor descobre que a mulher de Parry havia sido assassinada naquele fatídico dia, três anos antes, levando o mendigo (ex-professor de universidade) à loucura. Tentando se redimir, Jack procura ajudar Parry a conquistar sua nova paixão.

Excetuando-se o Cavaleiro Vermelho, quase não há efeitos especiais nesse filme como os que estamos acostumados quando se trata de Terry Gilliam. Tudo aqui é praticamente diálogos e interpretações. Por sinal, que interpretações! Williams e Bridges dão um show, são brilhantes, e comoventes, em seus papéis. As atrizes que interpretam Anne e Lydia também não ficam atrás: cumprem muito bem o que devem fazer.

Mas o cerne do filme é o amor. É um filme sobre o amor, como ele pode nos levar à loucura e nos curar, como pode ser cruel e doce ao mesmo tempo, machucar e sarar. Não é apenas sobre o amor entre duas pessoas: o filme também procura retratar a visão estadunidense sobre os mendigos. Há uma cena muito bonita na estação de trens/metrô: um pedinte cadeirante está parado no canto, erguendo o copo de esmolas e recebendo as moedas dos transeuntes - um deles passa e joga a moeda fora do copo, Jack diz ao homem: "O imbecil sequer olhou no seu rosto", ao que o cadeirante responde: "Ele me paga para não me olhar". As cenas de paixão também são todas no estilo Gilliam: o jantar no restaurante chinês é muito engraçado e o monólogo de Lydia sobre como o amor vem e vai na vida da mulher - deixando-a sozinha - é de rir e chorar ao mesmo tempo, tamanha beleza e sinceridade nas palavras. Lydia, por sua vez, é uma personagem cativante: é difícil não se encantar com seu jeito atrapalhado, um jeito que casa tão bem com o de Parry!

Afora isso, as ressalvas de sempre: não é um filme para todos os públicos, mas os que sabem que o amor, sim, pode fazer com que as pessoas dancem na rua, esses irão sorrir com pequeninas lágrimas escorrendo nos cantos dos olhos. Tudo isso, graças a Terry Gilliam.

E como diz Anne a Jack em uma das cenas: "Duas pessoas podem se sentar de frente e nunca se verem... outras podem estar separadas, e nada as manterá longe".

Alex Martire


Brazil, 1985.


Talvez Terry Gilliam não seja um diretor para todos. Seus filmes não são "comuns", isso é fato. Gilliam abusa (ainda bem) do humor e da fantasia para fazer seus filmes, mas sempre de um modo em que se tornem inteligentes: não é uma comédia feita apenas para rir, não é uma fantasia/aventura apenas para nos deslumbrarmos com o visual.

Que sou fã de Gilliam, não escondo. Ele é um dos poucos diretores que casam perfeitamente com meu gosto por "estranhices", tornando o bizarro em interessante. Já havia visto "Brazil" em DVD há um tempo, mas revi agora em Blu-ray, e em Director's Cut, o que só fez aumentar meu fascínio pela obra! Novamente tenho de me repetir com relação ao meu gosto por efeitos que independem de computação gráfica: como gostaria de ver um filme hoje em dia usar basicamente apenas miniaturas, bonecos, essas coisas "falsas"! Sinto falta disso: no mundo digital as texturas são...digitais, claro: falta um "tempero", falta uma sensação de realidade, algo com que a gente olhe e pense "Isso eu posso tocar". É claro que o uso de coisas reais pode trazer a clara ideia de que tudo é uma farsa mas, como disse o mestre Harryhausen em um documentário, "a graça da fantasia é saber que ela é irreal". Vendo em blu-ray essa "farsa" fica ainda mais escandalosa: e o Gilliam não quis sequer apagar os cabos que sustentam Sam Lowry quando ele voa igual Ícaro - estão ali, e permanecerão, já que o diretor parece respeitar o fato de que, uma vez que chega aos cinemas, o filme deixa de pertencer a seu criador e se torna um bem daqueles que o assistem. Os efeitos na época em que foi lançado (1985) já eram ótimos e ainda hoje impressiona pensar no tempo que gastaram produzindo-os. Um deleite!

A história do filme pode ficar um pouco confusa no decorrer de seus 142 minutos mas, o cerne, é: em algum momento  do século 20 uma cidade (ou um país, ou um mundo) está infestada de burocratas. É necessário preencher centenas de formulários e requerimentos para fazer coisas cotidianas, tal como arrumar a refrigeração de seu apartamento. Somos apresentados à personagem central da trama, Sam Lowry, um rapaz que exerce tediosamente sua função no Departamento de Arquivos do Ministério de Informações, passando os dias preenchendo papéis. Sua vida muda quando, impulsionado por sonhos, é atraído pela figura da "terrorista" Jill Layton - uma mulher que testemunhou um erro do ministério e agora é perseguida para queima de arquivo. Sam Lowry é promovido para o departamento de Obtenção de Informação, no qual vai desvendando aos poucos a vida de Jill ao mesmo tempo em que se afunda em problemas burocráticos. 

E sobra sarcasmo de Terry Gilliam para tratar da Burocracia! Ele é ácido, realmente genial em fazer com que pensemos: "Mas que porcaria, é isso mesmo o que acontece! É por isso que o país sempre emperra". Não fui atrás de mais informações sobre a visão do próprio Gilliam sobre esse filme, mas talvez tenha de discordar de uma crítica que li há um tempo e dizia que, de Brasil, havia só o título. Acho muito difícil Gilliam ter dado o nome ao filme à toa, só por causa da música "Aquarela do Brasil" que é tocada sempre. Sendo ele bem esperto, creio que tenha sobrado, sim, uma ponta de crítica ao nosso país: o Brasil é, reconhecidamente, um país que sofre do mal burocrático, temos muita gente que tem o mesmo destino de Gregor Samsa do Kafka. Tudo aqui para na burocracia e é mais fácil mover o mundo no sentido contrário do que conseguir que seus problemas se resolvam de forma prática. Obviamente, "Brazil" é uma fábula que se aplica à qualquer nação, mas, que a gente ri de indignação ao fazer analogia com nosso cotidiano brasileiro, a gente ri!

Também faço parte do coro daqueles que clamam ser "Brazil" a obra-prima de Terry Gilliam. Pra mim, ela ganha por pouco do "Mundo Imaginário do Dr. Parnassus" (2009). É como eu disse: não é um filme para todos. Mas aqueles que gostam de sarcasmo e fantasia irão se deliciar ao som da "Aquarela"!

Alex Martire


 
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